Histórias de Caicó - I
O inferno. O início da tarde estava mais quente do que a manhã, que já havia sido um desafio para quem estava acostumado ao calor da cidade. Era quinta-feira, feriado municipal e dia da tão famosa Feirinha, um dos pontos altos da Festa de Sant’Ana. Como no carnaval, grupos de amigos devidamente identificados com suas camisetas próprias – os chamados blocos – enchiam as ruas desde a praça do coreto até a Ilha de Sant’Ana, cada qual disputando os ouvidos próprios e alheios com músicas da moda em volume estrondoso.
Perambulava pelos foliões sem ser notado. Andava quase sem vontade, o calor da rua e da movimentação da plebe quase sufocando-o. Sentia um pouco de falta de ar, esforçava-se para puxar o mormaço vespertino para dentro dos pulmões, e, nesse esforço, obtinha algum êxito. Não tinha tantos amigos quanto aqueles que ali festejavam. Isso não o incomodava. Também não o incomodava não ter os pés calçados ou o corpo franzino vestido num daqueles uniformes. O que o incomodava era a gente quase tropeçando em si, o falatório sem sentido e estridente disputando com as músicas de batidas repetitivas e incessantes.
O ajuntamento de pessoas formava bolsões aqui e ali. Às vezes parava, observava o grupo, chegava a se animar com a possibilidade remota de descolar alguma coisa para comer, talvez algo para matar a sede que começava a acossá-lo. Era difícil conseguir alguma coisa. Normalmente, mal era notado. Quando alguém sentia sua presença, simplesmente ignorava. As coisas estavam feias por ali. Não havia conseguido um só quitute para mastigar, nem mesmo um pedacinho de carne borrachuda e quase queimada, daquelas que se despreza por mais se parecer com carvão do que com churrasco. Também não encontrara nenhuma vasilhinha plástica com resto de creme de galinha.
Saiu dali pela calçada e se viu forçado a ir para a rua pavimentada com pedras irregulares. Contornava pessoas e desviava-se de grupos. Às vezes alguma voz gritava no meio da multidão e ele se assustava, dando um salto para o lado e procurando a fonte do grito. Detestava quando aqueles ajuntamentos se misturavam confusamente e os homens de preto intervinham. Sempre acabava sobrando para si. Alguém corria e chutava-o no caminho. Certa vez, vira-se no meio do imbróglio. Tomou muita pancada, e não adiantou gritar de dor. Por sorte, um bom samaritano o conduzira para fora do fordunço. Agora, estava mais atento: qualquer sinal de confusão e chispava para longe.
A situação estava um pouco menos tumultuada na praça da Catedral de Sant’Ana. Barracas haviam sido montadas sob o Arco do Triunfo, sobre o qual ficava a imagem de uma mulher em vestes longas e aparência serena. Nunca havia visto ninguém como ela ali, perto do chão. E naquele dia especificamente, as chances eram ainda mais remotas. As fêmeas de longos cabelos andavam de jeito esquisito, empinando as ancas, caminhando lentamente, rebolantemente, expondo pernas longas e lisas. Os machos vagueavam em bandos, todos empombados, o peito estufado. Todos tinham óculos escuros no rosto e a maioria carregava copos nas mãos. Não entendia o comportamento deles. E nem precisava: afinal, aquele não era seu mundo.
Passou por mesas e cadeiras ocupadas, lixeiras abarrotadas e chão sujo até arranjar um lugarzinho com sombra e sem ninguém para lhe incomodar. Sentou-se no chão morno e torto. Suspirou. O estômago roncou levemente. A fome estava apertando. Sentia o cheiro de comida impregnando o ar. Foi quando sentiu alguém perto de si.
Olhou um tanto assustado para o lado, as pernas já prontas para fazerem seu corpo disparar pela multidão. Felizmente, não era ninguém que lhe representasse ameaça. A garota era alta e magra e tinha uns olhos grandes cheios de carinho. Tinha nas mãos um pratinho de plástico. O cheiro denunciava seu conteúdo: carne assada. Levantou-se do chão.
- Tadinho. Está com fome, né?
Não entendeu o que ela lhe disse, mas soava de um jeito gostoso. Observou-a curvando-se até colocar o prato diante de si. E era um prato generoso, com muita carne, nada daqueles restinhos mixurucas que costumavam lhe dar por piedade e muito a contragosto. Curvou-se sobre o prato e o devorou. Não se importou com os carinhos dela em seu pescoço. Estava bom. Estava tudo muito bom.
Depois de matar a fome, olhou-a. Viu a menina chamando-o. Seguiu-a. Parou com ela junto de uma mesa com outras pessoas. Ela começou a se comunicar com um sujeito rotundo, careca e com um bigode bem preto sobre a boca. Ela contraiu as sobrancelhas. Emitia um ruidozinho manhoso e estridente, quase irritante. Ele gesticulava muito e tonitruava pela boca. Era uma altercação confusa. Vez ou outra olhavam para ele. Estava parado. Podia ganhar mais carne, afinal. Por fim, o homem grandalhão mexeu a cabeça e a menina soltou um gritinho. Parecia feliz.
Comeram filé à parmegiana. Ele ganhou um pouco. Depois de pagarem a conta, ao som do sino da igreja convocando os fiéis para a missa, foi levado pela garota. Não seria mais de rua. Agora, ah, agora seria um vira-lata de família.