Desconstrução
À sociedade, uma estatística; à família, uma cifra; aos amigos, a inexistências; à vida, a morte.
As coisas fugiram do seu controle – ele não se perdeu, continua o mesmo, mas ao seu cotidiano entremeia-se a consciência da morte.
Enquanto se é, não há morte; quando esta houver, não se será. Se a lógica vencesse os temores humanos, não haveria por quê temer tal certeza tão cruel. A brevidade o atormenta, pois semeou apenas vento e colheu sempre tempestade.
Não há vontade para se libertar, nem força para tanto. Sua cabeça juvenil frustra-se com a utopia em que vive, segundo a qual o saber trará a consciência necessária para a grande transformação social. Sim, you may say he is a dreamer.
Quando se amadurece, a esperança que vive no peito do homem rapidamente se esvairece e mantê-la acesa quando as luzes se apagam é uma tarefa difícil demais.
Com o copo metade vazio, a outra metade se enche de ar. Tal qual é a sua cabeça, ébrio e breu fundindo-se dentro de si.
A apatia dominou seu peito e, com o tempo, afastou-se de seus amigos e dos círculos sociais a que pertencia, primeiro por seu arbítrio, posteriormente por desistência alheia.
Ficando só é que então se encontrou alguém. Não aprendeu a vencer ou a perder, mas habituou-se a chorar. Perdeu o apreço e a afeição das pessoas – e um pouco de si mesmo também.
De poucas palavras, hábitos pouco polidos e tristeza presente, não achava-se digno de ser quem era, queria ser muito mais. Frustrou-se por não alcançar tal meta, criando a culpa, a lágrima e a insatisfação em seu cotidiano.
Fez escolhas erradas e equivocadas em suas vidas, e era preciso pôr um fim a isso tudo – tornar mais fáceis as coisas para todos. Ele sabia o que precisava ser feito.
A sua ausência facilitaria a vida de todos. O seu melhor, mesmo que tão pouco, não era o bastante, apesar de ser sincero. Fraquejou seu propósito por breves momentos e sentiu o incômodo de sua respiração dominando o quarto.
Comeu pouco aquele dia, calado durante toda a refeição. Arrumou seu quarto, deu nomes aos pertences que desejava entregar a algumas pessoas, se despediu e jurou não voltar mais.
Bateu com raiva a porta – mas sem força – e secou uma lágrima que se demorou em sua face. Sua cabeça funcionava à mil quando pôs o pé na avenida, mas o seu corpo parecia vazio.
O trânsito não o incomodou como antes. Até o apreciou enquanto aguardava o sinal fechar para poder então encontrar o seu caminho.
Um alvoroço logo à frente lembrou-lhe de que a vida humana é coisa frágil, enquanto as pessoas se aproximavam, apontavam, comentavam e espalhavam a notícia fresca.
A ambulância demorou a alcançar o corpo, já sem vida, estirado no chão, com sangue por toda a parte.
As crianças, voltando para a casa, amontoavam-se nas janelas dos carros para observar aquela cena. Um senhor, pai de família, operário, de uma construção, morreu na contramão, atrapalhando o tráfego.
Beijou sua mulher, abraçou seus filhos, com olhos cheios de lágrima, comeu feijão com arroz, bebeu e soluçou, atravessou a rua com passos tímidos e bêbados, subiu a construção – tropeçou, fraquejou - e flutuou como um pássaro, se acabando no chão como um pacote tímido.
O sinal fechou, ele seguiu seu caminho também. A vida é tão rara. Deu meia-volta, escolheu viver.