O MAIS LIMPO DOS IMUNDOS

As viagens de ônibus até o escritório são monótonas. Se eu não carrego um livro ou fones de ouvido, a viagem fica ainda mais chata. Então, recosto minha cabeça sobre o vidro da janela e durmo.

Numa dessas viagens sem livro ou fones de ouvido, tive meu cochilo interrompido por uma discussão que vinha do assento ao lado. Tratava-se de um rapaz sujo, mal vestido, com a barba e os cabelos enormes a gritar com uma menina (linda, diga-se de passagem) que mal sabia o que fazer. Amedrontada, ela apenas encolhia-se no canto, entre aquele ser e a janela.

Aquilo me pareceu estranho. O que aquele cara queria com ela àquela hora da manhã? E por que gritava tanto? “Deve ser um desses mendigos malucos”, pensei. Passei a prestar atenção em suas palavras, mas não consegui entender o contexto da coisa.

- ...você sabia? Hein? Sabia? Responda! – dizia o rapaz.

Não pude ficar indiferente. Tive de tomar uma atitude antes que ele resolvesse agredi-la.

- O que está acontecendo? – eu perguntei.

- Não se meta, cara! – ele me respondeu sem sequer olhar no meu rosto.

- Está importunando a menina, cara!

- Já disse para não se meter! – disse ele, mas, dessa vez, olhando-me nos olhos.

Estiquei meu braço e alcancei os braços da menina, que, lendo meus pensamentos, agarrou-me a fim que eu a puxasse daquela situação. Puxei-a.

- Olha aqui, seu... – ele me disse nitidamente bêbado.

- Olha aqui você! Não vai fazer mal à menina, ouviu? Não na minha frente!

O motorista do ônibus freou e resolveu intervir na discussão.

- O que está acontecendo aí? – perguntou o motorista.

- Esse cara está bêbado e está tumultuando a viagem... – eu ia dizendo.

A menina já se encontrava sentada no banco onde eu sentara; olhava para a rua.

- Como é que é, seu mendigo? Ou você fica numa boa aí ou serei obrigado a retirá-lo! Entendido?

- Quem é você para me tirar daqui, seu motorista de merda? Quer me tirar o direito de ir e vir também, é isso?

- Eu vou te mostrar quem é motorista de merda, seu...!

Aquele motorista percorreu o corredor do ônibus em passadas fortes; fechou os punhos.

Ao chegar perto do causador de toda aquela confusão:

- Fale de novo, se for homem!

- Motorista de merda! Falei!

Vermelho de raiva, o motorista acertou um soco no nariz do bêbado.

- Calma aí, gente! – eu disse.

- “Calma” é o caralho, merda! – disse-me o motorista arrastando o bêbado até a porta da frente do ônibus.

Desacordado com o soco, o bêbado foi jogado na calçada.

- Sabia que ia dar merda! Sabia! – disse o motorista ao sentar-se ao volante – Você está bem, Cíntia? – perguntou à menina.

- Sim, estou! – ela o respondeu.

O ônibus partia e a imagem daquele rapaz caído sobre a calçada distanciava-se de nós.

Sentei-me ao lado da menina. Ela me parecia ainda mais linda que momentos antes; quase uma índia. A pele bem morena, os olhos puxadinhos e os cabelos tão lisos e brilhosos... Ela não olhava nos meus olhos; olhava para a rua o tempo todo.

- Está tudo bem mesmo? – eu perguntei.

- Mais ou menos...

- Ele chegou a te machucar? Eu estava dormindo, e...

- Não. Ele apenas disse algumas coisas, mas...

Ela pausava.

- Mas o quê? – eu perguntei.

- Acho que ele tem um pouco de razão.

- Por quê?

- Ele me disse que é por minha causa que ele está daquele jeito; sujo e vivendo na rua.

- Como assim?

- Ele é meu ex-marido – ela disse em voz baixa.

- !!!

- Faz um mês que eu terminei o nosso relacionamento. Foram quase cinco anos juntos. Terminei por conta de outro homem.

- Hum...

- Ele não segurou a onda e ficou assim. Dá para entender?

- Bem, quem sou eu para me meter assim numa história dessa? Mas acho que faltou um

pouco de amor próprio da parte dele. Mulher nenhuma merece me ver numa decadência como a dele. Eu penso assim.

- É...

- Desculpe dizer, mas você o traiu, pelo visto.

- Eu o traí sim.

- Isso agrava um pouco a situação, não? Mas ele era ruim para você? Ele lhe agredia?

- Até que não. Ele não era nada disso que o senhor presenciou; totalmente o contrário. A

relação esfriou, só isso.

- Acontece, mas a traição não tem justificativa, não é?

- Sei que não. O pior é que foi com o irmão dele.

- Nossa! Belo irmão ele tem, hein! E bela esposa ele tinha!

- Pensei que quisesse me acalmar, ao invés de me julgar, senhor.

- Ajudar? Quem precisa de ajuda é o cara que acabou de levar um soco no nariz e, a esse momento, deve estar sangrando naquela calçada imunda.

Ela se calava.

- Bem, senhor – disse ela minutos depois –, chegou o meu ponto. De qualquer forma, obrigada.

- Tudo bem.

Antes de descer do ônibus, a menina foi até o motorista e, ardentemente, lhe beijou a boca.

- Eu sabia que se eu deixasse meu irmão subir ia dar merda! – disse o motorista à menina.

- Está tudo bem, meu amor. Não acontecerá mais, está bem? Bom trabalho para você!

- Para você também, meu anjo! Até mais tarde!

Eu perdia os sentidos ao mesmo tempo em que um arrependimento monstruoso me consumia o peito. Só conseguia pensar naquele rapaz sobre aquela calçada imunda.