Apenas uma história
... E então, decidiu entregar sua vida e seu destino àqueles velhos sapatos, já batidos, surrados, pois os julgou mais sábios que ele próprio e decerto saberiam conduzir-lhe por um caminho melhor dos quais já havia trilhado usando de seu livre arbítrio.
Não precisaria mais nada além deles e, pensando assim, resolveu por desfazer-se de todo bem que possuía. Foi ao seu “baú", composto por uma velha caixa de sapato já amarelada pelo tempo ainda carregando o que fora um sorriso de lábios vermelhos, hoje apenas lembranças róseas de um velho calendário onde uma mulher o fitava. Pegou nas mãos seus mais valiosos tesouros e ditou a si próprio o curto inventário que deixaria ao cruzar a porta da saída da velha casa de tábuas onde morava.
As velhas abotoaduras deixadas por seu tio-avô, já descascadas e corroídas pelos sonhos de um dia serem usadas no belo terno que lhe completaria o charme e elegância que por anos a fio assistira nos velhos filmes dos cinemas já derrubados pelo progresso avassalador, estas já não serviam mais ao novo sonho pelo qual somente os velhos sapatos o conduziriam. Sim, deixaria para os que viessem depois dele a ter naquele velho palácio de tábuas onde também deixara pregados às "paredes" os sonhos contados apenas por parafusos velhos e enferrujados. Sonhos de um menino chegado de já nem se sabe onde, a memória já falha nega-se a lhe mostrar as imagens que se perderam no tempo...
O lenço que já fora branco e desfilara na lapela do velho paletó seria deixado à janela de Inocência que na certa acolheria esse tesouro e cuidaria como o cuidara seu até então dono. Saberia a já mulher das paixões impregnadas nele através das lágrimas ali depositadas por amores não correspondidos? Certamente! Inocência carregava à pele toda sensibilidade que precisava o herdeiro de tão grande tesouro...
Por último, seu maior e mais precioso tesouro: Um livro! Esse, já com as páginas gastas da leitura constante, teria muito a dizer a quem dele se apropriasse. Ele já não precisaria mais de nenhum desses, pois o sol já estava se pondo sobre o morro onde morava. Os sapatos furados o olhavam sorrindo convidando-o a partir. A hora já era chegada, não havia mais o que esperar. Calmamente e com gestos ritualísticos, ajeitou-se dentro do velho paletó que fora de tamanho dançava-lhe no corpo, sentou-se em seu trono, um velho banco de madeira gasta, onde por tanto tempo se sentara entregando-se aos mais diversos pensamentos e tempos que o envolvia nas leituras que costumava fazer. Nada mais lhe pertencia, nem mesmo seus pensamentos. Olhou seus velhos amigos que ali do chão à sua frente, apontavam o céu que no seu infinito os aguardava em conforto e liberdade. Segurando-os, levou-os ao peito fechando em um forte abraço onde dizia num gesto silencioso do seu agradecimento à vida, calçou-os cerimoniosamente e devagar se pôs a levantar. Viu que não parava, era como que se crescesse mais e mais. O céu tornara-se seu abrigo, o envolvia recobrindo sua alma da luz tão própria às estrelas e assim, olhou novamente para os sapatos que agarrados aos seus pés sorriam-lhe cantando a vitória que só aos loucos e poetas é permitido conhecer...
10/05/2006