Um sábado nas montanhas

O sol, com seus raios ainda fracos prenunciava que seria um dia lindo. Ainda que sobre um leito; mais um dia de dezenas de outros. Sentia-se cansado de olhar tudo que adornava aquele quarto: o televisor à frente, a cômoda ao lado, próxima da cama a maldita mesinha cheia de drogas, espalhadas entre bulas e embalagens. “Mas de que adiantaria aquela mesinha tão próxima se me falta o principal: - alguns movimentos – pensou com certa irritação.”

Mas não estava tão péssimo quanto poderia: - sobraram-lhe a voz, a inteligência e os movimentos superiores... Podia ainda ler um livro e entendê-lo. Podia xingar alguém quando sentisse vontade; ir ao banheiro já dependia dos favores de Ana Laura, a companheira. Cuidadosa e dedicada, mas notoriamente cansada.

Tudo ocorreu numa manhã de inverno. Alberto, policial civil, atende ao chamado de uma mulher que desesperadamente clamava por socorro. Aparentemente drogado, o marido, apontava uma arma para sua cabeça, e esbravejava:

- Vou atirar nela se alguém se aproximar... Não tentem!

Alberto como policial, mesmo contrariando aos ditames do agressor, tenta todas as estratégias de negociação com aquele sujeito que aparenta estar sob efeitos alucinógenos; completamente descontrolado. “Está muito difícil controlá-lo – concluiu em pensamento, fitando-o”.

- Senhor, baixe a arma e vamos conversar. Propõe Alberto ao agressor.

- Não estou disposto a ouvir nada; minha decisão foi tomada a partir da constatação de que ela é uma vadia e me fez de palhaço – olhando de soslaio para a mulher. Tentei por vezes que ela repensasse tudo que vinha fazendo a mim e ao meu filho. Não quis. Portanto, merece morrer e com vários buracos na cabeça. Perseverou o agressor.

Neste instante, Alberto bem próximo tenta surpreendê-lo dando uma tapa na arma. Mas, por infelicidade, o agressor, mais esperto, desfere um tiro contra Alberto, que no chão ainda consegue atirar no agressor, atingindo-o no peito. O agressor tem morte instantânea e Alberto é socorrido por militares que vinham chegando.

Alberto, hospitalizado é submetido a tratamentos, cirurgias, os quais não contribuem para a recuperação de alguns movimentos. Fica paraplégico. Fim de carreira. Ficaria sobre um leito, horas, dias e anos... Precisaria familiarizar-se com uma cadeira de rodas.

Ao cabo de meses, deixa o leito hospitalar e vai para o leito de casa. Um apartamento comprado com o seguro. Contudo, a companhia de Ana Laura traz-lhe lembranças e acalento para aquele novo estágio de vida. “Teria sido pior com a ausência de Ana Laura – pensa Alberto”.

- Ana Laura, querida! Preciso ir ao banheiro. Em breve terei uma cadeira de rodas e, claro, você terá mais paz...

- Alberto! Estou aqui para auxiliá-lo no que precisar. Já te disse tantas vezes!

- Ana! Confesso-lhe que você foi um achado em minha vida.

Ana Laura olha-o com uma expressão de humildade, baixa os olhos e lhe dirige:

- Para tudo há uma explicação, Alberto. Há coisas, na verdade, que evidenciam coincidências. Mas será que são coincidências mesmo ou obra necessária? Talvez antes de acontecer já estivesse predeterminado; escrito, ajustado...

- É, Ana, talvez! Mas embora policial jamais tive a intenção de me tornar um homicida... É uma sensação horrível, confesso!

- Alberto, você não teve alternativas. Ou você atirava certeiramente como o fez, ou não estaríamos dialogando agora. Não se sinta culpado. Veja que você foi o mais prejudicado, está vivo e...

Ana Laura deixa-o no banheiro, vai à cozinha acende um cigarro e volta para reconduzi-lo ao leito. Antes, porém, para à entrada do banheiro e pensa em tudo que aconteceu a Alberto. “Teria sido eu o pivô? – inquire-se a si mesma” Desvencilhou-se daquele pensamento extemporâneo e foi estar com Alberto que já a aguardava, em silêncio.

- Desculpe Alberto! Fui baixar o fogo...

- Tudo bem, Ana. Afinal, sou eu o necessitado, o que não me autoriza reclamar de sua complacência. O que eu faria sem a sua ajuda?

Ana Laura franziu espontaneamente a testa num gesto pensativo e, em silêncio, levou-o para o leito, cobriu-o, deu meia-volta. Parou próxima à porta, olhou com intensidade e saiu; o almoço estaria pronto em breve.

Alberto observou a tudo e teve vontade de chamá-la de volta para conversar; sentia naquele dia um vazio no peito. Não o fez.

Ana Laura serviu-lhe o almoço. E ainda em silêncio, demonstrando entre alguma preocupação, a fadiga proveniente daquela rotina.

- Você está muito calada, Ana? Está aborrecida com alguma coisa?

- Não, Alberto! Não há nenhum aborrecimento. Preciso me calar vez ou outra para recolocar-me; ajustar os parafusos... disse Ana com um sorriso sorrateiro.

Num sábado pela manhã chama ao interfone. Era a entrega da cadeira de rodas. Alberto expressa nitidamente uma alegria incontida; como uma criança quando recebe um presente, um brinquedo. Não conteve as lágrimas. Sentiu-se naquele momento, apesar de tudo, um homem parcialmente realizado. Afinal, ia depender menos dos préstimos de Ana Laura. Ela agora podia ler livros nas horas de folga ou tecer um crochê, assistir a um filme. Ou passear pelas lojas do shopping. Merecia tudo isso, pois, dedicou-se arduamente aos afazeres daquele lar e mais precisamente a ele. Não fosse o endividamento com a aquisição do apartamento, Alberto já teria a sua cadeira de rodas. Mas tinha ainda, entre outros, Ana Laura como credora. Alguns meses de atraso. A cadeira foi fruto de uma rifa promovida por colegas da delegacia onde Alberto trabalhava. “Posso até mesmo sair às ruas agora – se Ana Laura puder me levar – até me acostumar – pensou Alberto, olhando para a cadeira e Ana Laura, simultaneamente.”

Ana Laura se prontificou a levá-lo aos passeios, o que aumentou sua vontade de viver para ver as coisas que mais gostava: a pracinha São Miguel – onde, aos sábados junta um número expressivo de pessoas; o bar do Careca – local de encontros dos cervejeiros. Alberto sentia-se feliz em poder voltar a participar de tudo isso, ainda que de forma limitada.

- Estou muito contente com tudo, Ana! Disse Alberto estampando um sorriso.

- Também estou feliz, Alberto. Muito feliz! Você merecia estar novamente com as pessoas com as quais sempre esteve...

Ana Laura agora menos solicitada trancafiava-se em seu quarto sob a alegação de estar lendo, mas se dedicava mesmo às lembranças. Chorava às vezes. Tinha fortes emoções, mas não tinha com quem compartilhar. Sua vida, seu grande amor. Onde estariam. Em lugar algum. Tinha à frente agora o trabalho, as rugas que insistiam em se destacar; uma gaveta cheia de rascunhos escritos nas noites de insônias. Insônias que a atormentavam com certa frequência.

Nos finais de semana, Ana Laura passou a conduzir Alberto aos lugares onde quisesse. Por vezes até opinava, no dia anterior, qual lugar iriam passear. Almoçavam e só voltavam para casa ao entardecer. Alberto sempre muito solícito agradecia constantemente a Ana Laura o carinho recebido.

- Ana posso pedir-lhe uma coisa?

- Sim Alberto, peça!

- Dê-me um abraço, Ana?

Ana Laura parou por uns instantes, encarou-o, curvou-se e abraçou-o...

- Desculpe-me Alberto! Não me sinto muito à vontade, ainda. Mas acho que logo, logo isso vai passar!

- Não se preocupe Ana! Você é bondosa, amável. Eu gosto de estar com você.

Na sexta-feira, Ana Laura dirigiu-se ao quarto de Alberto e propôs-lhe irem passear no dia seguinte nas montanhas. Era um lugar que transmitia paz; a paisagem bela, os rochedos, o clima. Apesar do difícil acesso, especialmente para um cadeirante, valia a pena. Preparou comida, a cerveja que Alberto gostava, bastante água mineral.

No sábado, Ana Laura levanta-se bem cedo, liga para o taxista. Prepara Alberto e saem rumo às montanhas. Intencionavam ficar por lá todo o dia. Ana Laura esqueceu-se de marcar com o taxista o horário para apanhá-los. “Não tem problema, o celular tem bom sinal aqui nas montanhas – havia uma antena – ponderou.”

Ana Laura leva à boca a garrafa de água, enquanto Alberto abre outra lata de cerveja. Era notória a satisfação de Alberto, respirando o ar puro daquelas montanhas. Ana Laura o conduz para próximo a uma ladeira pedregosa, olha durante algum tempo por toda a extensão do abismo, leva o pé à roda travando-a. Caminha alguns passos à frente e senta-se numa pedra, sem desgrudar os olhos de Alberto. Suspira longamente, e dispara:

- Alberto! Precisamos conversar. Aliás, eu preciso falar. Na verdade não quero ouvir nada de você, apenas ser ouvida. Não me interessa o que tenha pra dizer.

- Mas, Ana – resmungou Alberto, sendo imediatamente interpelado por Ana.

- Não precisa Alberto, apenas ouça e reflita.

- Você foi a pessoa que conseguiu promover toda a desgraça em minha vida, Alberto! Não imaginava, sinceramente, que você tivesse toda essa maldade impregnada na alma. Para se conquistar um amor é necessário, antes de qualquer coisa, respeitá-lo, tê-lo como verdadeiro e puro. Amor se conquista com amor. O homem precisa ter dignidade, seja na vida profissional ou social, o que faltou a você, caro Alberto...

- Ana, querida! Entendo tudo que...

- Eu disse que não queria ouvi-lo, Alberto e continuo não querendo, portanto, apenas ouça!

Ana Laura engole o resto de água com voracidade, enquanto Alberto abre a última latinha de cerveja que estava numa sacolinha pendurada no suporte da cadeira; havia outras na caixa de isopor debaixo da árvore. Tomou um gole como fosse o último – quase metade da latinha. Tentou mais uma vez falar, mas ouviu a mesma frase de Ana – desta vez com entonação mais rude:

- Não quero te ouvir, Alberto! Por favor, cale-se e lembre-se que sou a vítima de tudo. E continuou:

- Você se lembra, Alberto, de quantas vezes me importunou para que eu ficasse com você? Fosse sua – como você dizia aos quatro cantos? Sim, eu tenho certeza que se lembra de tudo. Afinal, você é paraplégico, não portador de amnésia, ou mal de alzheimer... - esses negócios que fazem perder a memória. Você tem discernimento de tudo que fez e continuaria fazendo se ainda pudesse andar. O que você fez a Otávio, meu grande amor, o homem que escolhi para viver, ter filhos, constituir uma família, ser feliz. Simplesmente numa estratégia assassina e covarde apagou-o em minutos; simulou um chamado, o revolver em minha cabeça, a traição de mim para com Otávio e meu filho. Eu não tenho filho, Alberto. Nunca tive. Você arrebatou nossos sonhos. E a sujeira maior, Alberto, - Ana Laura tremia os lábios e suava – foi quando você determinou que seu subordinado atirasse em sua perna para justificar o tiro no peito de Otávio. Mas o mal se paga com o mal, creia! – o tiro que o colocou nesta cadeira de rodas foi disparado pelo meu pai. Que após disparar em você colocou a arma no chão, próxima à mão de Otávio. Como o Boletim de Ocorrência foi preparado por você; no meu depoimento confirmei que Otávio além de me agredir com a arma, atirou em você. O juiz entendeu que você estava no estrito cumprimento do dever legal.

- Ana Laura! Vociferou Alberto - tenho direito a apresentar minhas justificativas e você precisa me ouvir: - eu te amava, aliás, te amo. Não suportei vê-la entregue a outro...

Ana Laura levantou-se, acendeu um cigarro deu alguns passos a frente e voltou a sentar-se na mesma pedra. Estava com semblante de mulher decidida. Ia desabafar toda a angústia grudada naquele coração, que chorava às escondidas, aguardando o momento certo para acertar as contas. Não interessava nenhum pagamento financeiro de Alberto. Os poucos ocorridos durante os trabalhos prestados a ele foram gastos na própria casa. Serviram para cobrir despesas de alimentação, pagar as contas. Sobrou quase nada; o suficiente.

- Alberto! Ouça com bastante atenção: - eu trouxe você aqui para destruí-lo de uma vez por todas. Não quero mais ouvir seu nome e muito menos vê-lo, por isso...

Ana enquanto deixava evaporar todo o ódio pelas narinas, além do suor escorrendo como se estivesse laborando uma tarefa árdua, a qual só caberia a homem, mirava Alberto como uma caça esperada e, finalmente, conseguida.

Alberto arregalou os olhos, começando também a transpirar. Quis falar alguma coisa, mas a fúria de Ana foi maior, impedindo-o que sequer balbuciasse. Em silêncio, Alberto olhava Ana e pensava: “Ela vai me matar, não posso me defender.” E o suor em Alberto escorria com maior intensidade que em Ana, que preparava-se para iniciar um novo monólogo. Os olhos de Alberto já estavam quase a saltar-lhe das órbitas. Ana ostenta o monólogo:

- Você, Alberto! Não conquistou sequer o amor de seus familiares. Não te procuram, nem ligam para saber como você está. Então tanto faz você morrer ou continuar vivo, - vegetando nesta cadeira. Seu corpo no meio dessas pedras agradaria sim: - aos urubus... Você como ser humano teve a chance de ser homem, mas achou que era imbatível; dono de todas as verdades. Que até mesmo um amor pretendido seria conseguido a força – a ferro e fogo. Mas será que era amor mesmo? Amor coisa nenhuma, Alberto. Quem ama verdadeiramente luta por esse amor com todas as garras, respeitando, porém, o ser humano. E você não teve a hombridade para fazê-lo; precisou matar, mentir, abusando sempre de seu poder funcional. Você, na verdade, nunca conseguiu fazer com que alguém te amasse; apagou todos os meus sonhos, minha vida, achando que isso me forçaria a amá-lo... Eu nunca te amei, Alberto! E tenho certeza que não o amaria jamais. Você conseguiu provocar em mim a ira, a comiseração.

A tarde já caia e sol que proporcionara um dia maravilhoso, emitia os últimos raios sobre as pedras daquele abismo. Alberto olhava Ana, apreensivo, olhos esbugalhados, a camisa molhada de suor; ausência de sangue nos lábios. Ana Laura, contudo, fumava e sorria um riso irônico, olhando-o com toda a repulsa.

O crepúsculo se achegava. Ana Laura, embora irada, olhou em volta toda a paisagem com ar do dever cumprido, ou quase. Permaneceu olhando por alguns minutos, voltando-se em seguida para Alberto, que a acompanhava com os olhos:

- Alberto! Já disse a você tudo que precisava. Você não significa nada pra mim.

Ana Laura abriu a bolsa apanhou os dois celulares – o de Alberto e o dela -, olhou o abismo, depois os celulares. Em silêncio, jogou um de cada vez, o mais longe que conseguiu. Sorriu sarcasticamente ao vê-los se espatifarem. Fitou Alberto, em silêncio, por longo tempo. Ajeitou a bolsa no ombro e saiu caminhando mansamente... caminhando... até sumir na curva.

FIM