A Fuga Tardia de Ana

Todos os dias ela pensava em levantar, colocar seus pertences mais importantes em uma mochila, trancar a casa e sair por aí. Queria experimentar o mundo, conhecer todo o tipo de gente, até mesmo do pior tipo. Nunca conseguia criar coragem, até o dia que se sentiu tão vazia, a ponto de fazê-lo sem hesitar.

Colocou seus livros mais importantes dentro de uma caixa que logo foi para dentro da mochila. Pegou alguns cadernos, que segundo ela, tinha textos e anotações importantes e totalmente privadas. Não levou muitas roupas, estava decidida que em cada ponto que parasse ia comprar algo para vestir, ia carregar o mundo no corpo, na alma e nas suas anotações feitas com uma letra feia e um pouco confusa.

Ao chegar na rodoviária, ficou quase uma hora parada em frente a placa que mostrava os lugares e os horários dos ônibus. Um senhor se aproximou e perguntou se ela sabia ler. Envergonhada disse que sim, só não sabia para onde ir. O senhor se mostrou simpático e começou a falar os pontos bons e ruins de alguns lugares que ela tanto olhada.

- Desculpe-me, o senhor trabalha aqui? - ela perguntou um pouco envergonhada e admirada do conhecimento que ele tinha.

- Não. Há muito tempo atrás comecei a fazer o que aparentemente você está fazendo agora. Posso dizer que já conheci muitos lugares desse país.

- Qual foi o primeiro lugar que o senhor foi? - Peguntou num tom eufórico, não aguentava mais de curiosidade.

- Rio de Janeiro. Como era bom o Rio de Janeiro daquela época. Lembro-me claramente das prais e principalmente das pessoas. Ah, as mulheres eram como anjos, tinham os sorrisos mais doces e bonitos. É claro que sempre tinha uma com um ar quase bruto e um sorriso forçado, que parecia doer o maxilar.

- Acho que vou pra lá, então. Acredita que nunca fui ao Rio de Janeiro?

- Como não, menina? Há quanto tempo mora em São Paulo?

- Moro a vida toda, mas a minha família nunca foi muito de viajar, quer dizer, só pra algumas cidades aqui perto e raramente. Prometi a mim mesma que depois que terminasse a faculdade, iria aproveitar um pouco do tempo que perdi fazendo essas viagens bobas e raras, mas só agora criei coragem.

- Então, cuide, menina. O próximo ônibus vai sair daqui há uns 10 minutos, vá logo comprar a sua passagem e deixe o resto pra lá. Você vai acabar gostando dessa vida meio cigana. Olha eu, praticamente um velhote de nada e faz tempo que não sei o que é voltar para a minha casa, apesar de ela ainda continuar lá e trancada. Os livros devem estar completamente empoeirados, a pouco comida que restava na geladeira deve ter virado uma espécie de pó.

Aquele senhor baixo, de olhos azuis e cabelos brancos do nada sumiu, parecia mais que estava ali só para fazê-la ir de uma vez só e garantir que não voltasse atrás por nada.

Estava um pouco ansiosa, mas comprou a passagem o mais rápido possível. Subiu no ônibus e teve a sensação de que estava iniciando uma outra vida, como se estivesse parindo outra dela. O motorista logo percebeu o seu nervosismos, segurou a sua mão e deu um leve sorriso. Ela entendeu. Agora não tinha mais volta, ou se jogava de vez nesse mundo maldito e confuso, ou viveria presa naquela angústia imensa.

Não demorou muito para que o ônibus logo saísse de São Paulo. Ana logo começou a pensar em todos os compromissos que deixaria de ir. Se sentiu um pouco triste por não ter avisado os pais ou ao menos algum amigo. Mas ao mesmo tempo estava feliz de poder sumir e deixar todos na dúvida. Também começou a ficar angustiada porque não estava acostumada a ficar longe, sentiu medo de não saber se virar, se comunicar e garantir a sobrevivência. Comunicação nunca foi o forte dela, e ela sabia muito bem disso. Era bom que ela começasse a ser menos tímida e arriscar mais e MAIS.

Meia hora depois pararam num posto e Ana ainda pensou em ficar e voltar. " Não, isso seria uma covardia das piores. Agora comecei, vou terminar". Entrou no ônibus rapidamente, colocou o cinto, como se fosse mesmo necessário e começou a ler, ler e ler. Abriu um dos seus cadernos e a partir dali decidiu que iria registrar cada momento de suas viagens.

Algumas páginas eram dedicas apenas para desenhos, mesmo ela não sendo uma grande desenhista. Outras tinham muitas citações de escritores e músicas, já que não tinha como escutar seus cd´s ali. As principais estavam cheias de frases de impactos, algumas que nem mesmo ela conseguia entender, já que a letra era meio ralada. "Sem problemas, depois eu as reinvento".

Quando estava chegando ao Rio de Janeiro, começou a se sentir perdida,com medo e intensamente nervosa. Desceu do ônibus e olhou para o motorista pedindo-lhe silenciosamente que ele não fosse embora. Era a única pessoa que era desconhecida e ao mesmo tempo tão íntima e amigável. Não teve jeito, pegou sua mochila e chamou um táxi.

- Pra onde a senhora quer ir? - Perguntou o taxista acabando de tirar um cigarro do bolso

- Você conhece alguma pousada barata e perto do centro?

- Olha, moça, pousada barata e no centro é um pouco complicada, mas posso fazer alto por ti.

- Pode? - Perguntou assustada

- Sim. Já levei muitas pessoas que vem praticamente fugidas, mesmo que não tenham que fugir de nada, a não ser delas mesmas pra cá e nem ao menos tem um lugar para ficar na primeira noite. Ao lado da casa de meu irmão tem uma senhora que aluga um quarto simples, mas que dá pra alguma coisa.

- Por favor, leve-me para lá.

O trânsito estava pesado naquela hora da tarde. De repente começou a chover e Ana ficou preocupada com seus livros, anotações a mochila rasgada de tanto peso. Logo chegaram a famosa casa de Dona Maria. Uma senhora por volta dos 60 anos, cabelos castanhos com algumas mechas brancas, olhos castanhos esverdeados, não muito alta e a simpatia em pessoa. Ana logo se sentiu em casa e foi muito bem recebida por aquela senhora alegre e ainda assim com marcas de uma vida um tanto difícil.

Ficaram conversando durante umas duas horas. Ana já exausta pediu para ver o quarto, ficou atônita quando abriu a porta e teve a impressão de estar entrando em um pedaço do céu ( ou de um paraíso barato, simples e feliz). Agradeceu a Dona Maria e foi arrumar suas coisas. Tirou primeiramente o caderno e assim escreveu sua primeira impressão sobre sua aventura tardia, assustadora e empolgante.

"Hoje senti medo, tristeza, saudade, coragem e muita alegria. Ainda estou insegura, mas Dona Maria parece uma mãe para mim. Disse que amanhã cedo vou conhecer seus dois filhos e três filhas. Eles adoram os hospedes daqui e sempre nos levam para conhecer a cidade. Quem sabe assim não faço logo amizades, arranjo um emprego e vou viver o Rio de Janeiro. Que venha amanhã!".