Acordar

Acorda com dor na garganta, um pouco de bafo e gosto amargo-adocicado. Sente a inflamação arranhar sua carne e o calor aquecer seu cérebro. Gripe? Sintomas alérgicos?Levanta-se até o banheiro, avista o terrível ser que se tornou enquanto se ausentou da vida, em sono. Cara amarrotada, marcas e rugas protuberantes, olhos vermelhos, cabelos bagunçados... o caos domina o sono. O acaso determina a forma.Escova dentes e cabelo, lava rosto e olhos, mexe na roupa e nas coisas em volta. Tocar o mundo é a certeza de estar vivo.Some por uns instantes do senso de presença do restante da casa: troca de roupa enquanto isso, perfuma-se e vai ao encontro da refeição. Prefere o remédio, dói a vida que proliferou enquanto morto, dói a inflamação na garganta agora atingida pela bactéria. Micro, nano vida, parasita, mortevida, minha vida.E então, toma sua refeição. Num súbito, num tenso e arrebatador súbito de dor, coloca a mão no peito e chora, hemorragia de lágrimas. Inexplicável, incalculável, sangra lágrimas aos baldes. Ninguém entende, mas ninguém se desespera. Ninguém nunca entende mesmo, nunca o entenderá, apenas acham que é uma pessoa sem futuro, sem dinheiro, sem casa, sem isso, sem aquilo. Mas quem pode dizer o que ele tem, se eles não tem?

A memória, ah... a memória pode ser um triste suicídio:O que pôde fazer se ao morder o pão com dor nos dentes, lembrou de sua avó molhando no cafécomleite para que ficasse mole, desmanchasse, digerisse melhor?Verte em lágrimas quem não é santo, pois quem sofre e sente dor, inflama a alma como a bactéria na carne. Mas quem sofre e sente dor por amor, saudade, falta... sim, pode licenciar-se do Vaticano, não teme o joguete vital: do que não sabe, não escreve, o que não ama, não odeia, o que não santifica, não demoniza... apenas sente. E sente. e sente.