Não sei por quanto tempo vaguei até encontrar o recanto do meu repouso. Tantos anos correram, foram tantos os locais por onde estive... Tudo me parecia irreal, sem referência, sem sentido. Minha única bússola era a solidão, a mais absoluta e medonha solidão, eu a havia alcançado em seu estado puro, destilado. Nada me consolava, até as lembranças me abandonavam como a água que escorre por entre pedras e limo. Minhas memórias eram uma nebulosa que se desfazia, uma aquarela que desbotava, um baralho misturado e confuso.

A casa estava reduzida a ruínas e escombros quando a descobri, mas insistia em manter-se de pé, encravada numa travessa esquecida, no centro de uma cidade violenta, numa época sem ideologias, recheada por guerras injustificadas, pobreza e ganância. Um período negro, de tédio e horrores.

As relações humanas conduzidas por máquinas, computadores, e-mails, mensagens digitais. O mundo tornou-se uma ilusão cibernética, habitado por criaturas para quem o semelhante era invariavelmente uma caricatura virtual. Nada que se assemelhasse ao belo alvorecer dos meus melhores dias. A vida estava ruindo, desmoronando como aquela casa, deteriorando-se como as minhas recordações.

Eu estava cansado, não suportava mais prosseguir.

Atravessei a porta e entrei. Deparei-me com um interior sombrio, imundo, entulhos espalhados pelos cantos, insetos de todos os tipos, ratos e algumas poucas pessoas que chegaram antes de mim. Não sei se notaram minha presença, se notaram fizeram questão de me ignorar. Eu me instalei sem enfrentar protestos.

Os outros habitantes dormiam durante a noite, enquanto eu me mantinha acordado, refletindo sobre a minha inutilidade, tentando decifrar minha condição. Esse era o nosso acordo tácito, nossa divisão de turnos. Coexistíamos nesse desencontro, durante o dia eu me entregava à ausência, à noite eram eles que se deixavam dominar pela paz do sono.

Nunca me incomodaram, jamais os importunei. A presença deles me aliviava em certos momentos. Outras vezes, me oprimia vê-los cobertos por andrajos, com a pele encardida no cinza fúnebre da miséria. Eu ainda me lembrava de Baudelaire, seus versos resistiam numa pequena trincheira em minha mente, versos que me marcaram a fogo quando li:

“Ele assim me conduz, alquebrado e ofegante,
Já dos olhos de Deus afinal tão distante,
As planícies do Tédio, infindas e desertas.
E lança-me ao olhar imerso em confusão
Trajes imundos e feridas entreabertas
- O aparato sangrento e atroz da Destruição!”

Um velho sofá e duas poltronas castigadas ornavam o centro da sala devastada. Quase todas as noites eu me concentrava ali, próximo aos miseráveis. Juntos, encontrávamos conforto no ambiente sepulcral que nos cobria. Não nos comunicávamos, mas nos pressentíamos. Nossa natureza era semelhante, somente uma frágil ponte nos separava.

Frio! Todas as noites dentro da casa eram frias. Nem mesmo a fogueira que os outros acendiam dava conta de me aquecer. Frio e escuridão, sempre!

Eu não conseguia mais reunir ânimo para voltar a explorar o exterior além da porta do sobrado. Não! Eu queria ficar oculto, escondido de mim mesmo.

A solidão era brutal, uma prensa que me espremia sobre o chão cravejado de pedras pontiagudas. Numa única madrugada eu gritei, extravasei o ódio e a dor que me feriam. Ventava forte, as janelas batiam e provocavam o choro das dobradiças que se desintegravam na ferrugem. Os mendigos se assustaram. Nunca mais me deixei levar pelo desespero.

Numa das noites infinitas, descobri um quarto no andar de cima, um aposento intocado. Cama, mesa, porta-retratos e móveis cobertos por uma espessa poeira. Nenhum objeto tinha sido corrompido pelos invasores, como se imperasse um respeito não declarado.

Na ponta do quarto erguia-se um grande espelho ovalado, preso num suporte majestoso, moldura de prata, ele brilhava refletindo a luz que capturava pelas frestas da janela. Era uma presença sedutora, mas eu me mantinha distante, afastado por um misterioso receio.

Aos poucos, com a minha memória embotando mais e mais, fui me esquecendo o porquê de estar naquela velha casa, com os seus habitantes em farrapos. Minha única emoção era o desprezo. O universo limitou-se ao interior escuro e gélido do sobrado. Silêncio, breu e frio!

Desenvolvi uma fixação pelo espelho, teimava em ficar a alguns passos de me colocar à sua frente. Mas havia o medo secreto que travava os meus movimentos. Eu me convenci que o espelho era a resposta. O brilho prateado, o reflexo do aço polido, era o que me restava.

Bastavam alguns passos e eu sabia que algo novo se revelaria diante de mim. Mas cada impulso adiante despertava um pavor que me sufocava. Depois do terceiro passo, foi como se houvesse ultrapassado a fronteira que me preservava seguro, naquele ponto o espelho adquiriu o poder de um imã que me puxava contra a minha vontade.

A verdade é uma força que pode ser adiada, mas que também é irrefreável.

Diante do espelho encontrei o meu horizonte. Encarando-o pude ver a imagem refletida dos móveis, da cama, da luz que vazava pela janela, das fotografias que exibiam uma história extinta, só não consegui enxergar a minha própria imagem. Eu era como o ar que não se vê, que não se sente, mas que penetra furtivo nos pulmões.

O frio aumentou subitamente, um negrume feroz me envolveu. Mudo, o espelho revelava a minha sina. Eu não existia! Um pensamento sem presença física. Eu era apenas uma breve fagulha de consciência que persistia em pairar entre os vivos. Um fantasma, um ser abstrato, alma à deriva num purgatório de concreto.

Frio, silêncio e escuridão!... Porém, senti a sua mão surgir no meio das trevas, foi como mágica. Segurei-a. É através dela que cometo meu último ato humano, guiado pela sua mão deixo meu derradeiro testemunho.

Frio, silêncio, escuridão!... Não consigo mais resistir. Entrego-me. Dissolvo-me na inconsciência. Que o vácuo do fim consuma a última chama...

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Numa noite de dezembro, década de 60, em meio a um salão rodeado de velas o médium largou a caneta como se tivesse sido eletrocutado, suspirou fundo, exausto. Quatro páginas escritas, uma carta psicografada que assustou os que estavam presentes. Aquele Centro Espírita ficou conhecido pelos relatos de esperança e luz que seus seguidores captavam. Preferiam que continuasse assim.

Concluíram que aquelas palavras brotaram de um espírito negro e não hesitaram em queimar todas as folhas. O reduziram a pó... A nada.

Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 14/07/2009
Reeditado em 08/05/2010
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