Desvio natural

Desvio Natural

A viagem cansativa, a chuva caia forte, a visibilidade que já era pequena pela noite agora era um grande obstáculo a qualquer motorista atento. Mas este não era um motorista atento, o peso dos gestos repetitivos cansava o corpo e a mente, as pálpebras captavam menos luzes e os braços adormecia, junto aos olhos. O carro começava a possuir uma autonomia onde o homem pouco interferia em seu rumo, apenas dependia de sua própria sorte, que já não era boa pela condição adversa que se encontrava. O relâmpago anuncia a mudança de rumo da viagem, o carro tangencia a curva, o homem tenta se proteger de sua própria desatenção para não pagar por inteiro seu próprio erro. A vista poupou-lhe do impacto, a escuridão tomou seus olhos e o silencio, seus ouvidos, mas a dor compensou a falta dos sentidos perdidos que de tão forte o corpo lhe obrigou adormecer.

Quando os olhos abriam vagarosamente como se tivesse medo do que poderia ver, porem nem sempre é dos olhos a melhor visão. Estava preso em uma jaula de ferros distorcidos, a chuva lavava-lhe o rosto pelo pára-brisa estilhaçado, sentia fortes dores na coluna, pois não estava em posição confortável, mas a perna era o que mais doía prensada pelo ferro. O farol o iludia da esperança de alguém pudesse vê-lo, mas sabia que o carro estava longe. A mão trêmula tentava atingir algo que o pudesse tirar-lo dali, a porta que geralmente dar acesso entre dois ambientes agora só parecia uma parede de concreto que o impedia de sair, que mantêm o prisioneiro em sua prisão. Sua força era incapaz de libertar-lo, a palavras saiam pela metade, gaguejadas, num pedido humilde e desesperado de ajuda, não tinha consciência ainda que somente ele mesmo podia se ouvir.

O liquido avermelhado o lambia a face, a respiração ofegante, a batida de seu coração já podia sentir nos tímpanos, o corpo se expressava em dor e a mente em desespero. A mão direita era a única que restava um movimento por mais simplório que este o fosse ali era o mais importante. Viu a sorte que tinha de existir o espaço onde coubesse seu corpo, mas pouco a pouco percebia que seu corpo contorcia-se para caber em algum espaço. Cada movimento o desgastava, estava como um líquido em um funil, cada movimento lhe empurrava num lugar ainda mais apertado, o peito prensava sua mão esquerda ao volante, ele percebia que o sangue prendia-se nas pontas dos dedos tornando-os roxos, como que se quisesse sair, mas não tinha por onde.

Ele espirou fundo para contrair o peito e puxar sua mão para liberdade, mas sentia os ossos cortarem carne dos seus pulmões e a mão presa ficava cada vez menos móvel, sentia que estava perdendo-a. Viu em sua mente uma escolha entre os pulmões ou sua mão e por mais irracional que parecesse ele espirou bem fundo, no máximo que podia, seus ossos entranhavam cada vez mais a carne e em um gesto violento, sua mão junto com um grito grave e ecoante saíram triunfante. Um alívio imediato o fez mostrar os dentes, como um movimento tão simples poderia lhe dar tanta satisfação? Mas pagou preço caro pela sua mão, os pulmões doíam mais que antes e trabalhavam menos e com mais dificuldades. Agora com duas mãos livre acreditava em sua força, como se o fato de ter duas mãos dobrasse sua força, o que numa tentativa de empurrar porta viu que na verdade sua força apenas fora dividida entre as mãos.

As trovoadas anunciavam um lampejo, cada relâmpago ele podia ver com mais nitidez em que situação estava. O sangue se misturava a água e escorria pelo ferro distorcido em caminhos tortuosos ate chegar ao chão e se espalhava ate onde finalmente sua visão podia enxergar. Uma fresta onde seus olhos podiam ver água, terra e sangue. Aquilo se tornou seu termômetro de mercúrio vivo, que quando aumentava sabia que sangrava demasiadamente.

As luzes do farol apagaram e a noite invadiu seus olhos dilatando suas pupilas, irrigando os olhos de sangue e às vezes de lagrimas, o tempo na escuridão mesmo que pouco, aguçavam a visão e os ouvidos, por mais que a estrada estivesse longe poderia ouvi-la ao lado. Talvez seu corpo despertasse novos sentidos que em uma vida metropolitana não era necessário. Um barulho diferente sussurrava aos ouvidos e pouco a pouco a sensação invadia a pele e o coração, captando o menor tremor, tinha certeza alguém estava vindo, uma luz cortava a escuridão do horizonte muito distante, ele esticava o pescoço para ver acima do volante pelo pára-brisa quebrado, as duas fontes de luz desfocavam a imagem que a cortava-a criando assim uma sombra que alcançava mais que olhos, mas devido a noite apenas era um vulto negro sem forma, ele gritava, mas o som não sai da boca, estava apenas em sua cabeça, não se externalizavam tão bem como o sangue que escorria do corpo, um homem desconhecido, mas que naquele instante poderia tornar-se o melhor dos amigos estava apressado e em pouco tempo se foi, ele reconhecera que as necessidades nos obriga a parar por maior que seja a pressa. Ele mesmo achou em meio de todo aquele aperto, a necessidade fugir-lhe as calças. Sentiu pena de si mesmo, o desprezo que aquilo significava, não era mais digno das próprias calças e os olhos puseram a se expressar.

O alivio da lagrima que salgada escorria-lhe a boca, e aquele gosto lhe deu vida, aquilo mostrava que ele ainda não morrera e deveria continuar, assim como libertou sua mão viu-se libertando as pernas, o corpo e flutuando meio a escuridão ate alguém o visse e o salvasse. Mas esse lapso de subconsciência terminara com um relâmpago que o pôs em seu lugar, ele era parte da ferragem, seu corpo estava nela e ela estava nele. A sede começava secar-lhe os lábios, e a chuva que o impediu de ver seu próprio desastre salvava sua vida, água entrava na entranhas, percebeu que talvez não estivesse só, para que as luzes dos faróis se do céu vinha maiores das visões? Parece que a própria natureza ganhava vida e percebia que como dependia dela para salvar-se, mas assim como a natureza salva também mata, e outros dependiam de vê-lo morto. Uma coruja pôs-se a espreitar, os olhos grandes pareciam farol querendo enxergar o barco perdido, aquilo o fez perceber que se não saísse de onde estava iria acabar sendo devorado pela terra quando as luzes do dia chegasse.

O medo se tornou arma contra a dor, as costas estavam muito doloridas tinha que livrar-se dos incômodos que o apertavam, as engrenagens que entravam a pele tinham que ser expulsas, o volante que prensava o peito e deveria curvá-lo para não apertá-lo contra o banco, ele tentava rodá-lo mas o circulo teimava em girar. Maldito fosse aquele volante, e muitas tentativas ele repetiu e repetiu. Foi quando percebeu que o problema não era o volante, mas eram as rodas que surradas ao chão não se moviam, então em vez de girar o volante ele se propôs a mover o corpo. Aquele tempo que passava ali o ensinava coisas para vida. O controle foi à mente e da mente veio ao corpo.

A dor insuportável limitava os movimentos que pouco a pouco se deslocavam nas ferragens, esse movimento foi subitamente interrompido pelo som de um estalo acompanhado de grito onde as mãos automaticamente dirigiam-se as pernas, sentiu os ossos da perna estava quebrado e perfurando o músculo. A aflição da dor não deixava a perna, tinha que sair dali, o desespero tomou conta de si, as mãos procuravam onde segurar, os quadris se contorciam para qualquer lugar que fosse menos aquele que estava. A perna era a única parecia que mantiveram a calma, não se movia, numa balburdia de movimentos forçou o corpo sair dali, a perna tracionada e puxada varias vezes lhe botou mais fundo do abismo da dor. A cabeça caia junto ao pedal da embreagem, se livrou do volante ao peito, mas perdeu a visão da fresta que via o sangue escorrer, perdeu a chuva do pára-brisa, ganhou a escuridão e um lugar onde por cabeça.

A chuva cai no banco onde estava, estava agora abaixo, mas confessava que aquela posição era mais confortável, menos apertada, podia mover mais músculos, porem as ferragens que antes o limitavam, algo de fora, agora sua limitação era de dentro, a dor lhe limitava, a perna ainda presa. Deste novo ângulo ele via porque estavam presas, o ferro não apenas o prensou os músculos, mas o perfurou a carne atravessando-a por inteiro, aquela visão entro-lhe nos olhos, e um gélido sopro tocou seu coração. Ele se propôs chorar novamente, mas não uma lagrima de dor, não algo que fosse impulso subconsciente, ele chorou consciente, a tristeza não estava nas pernas ou em qualquer parte que lhe atacava a morte, chorou dos próprios pensamentos que tiravam não a vida, mas a vontade de viver.

Sabia que a desesperança nesses casos era a melhor amiga da morte, era o meio infeliz da desistência, era por onde ela caminhava. Mas chorar expulsava em lagrimas o que a mente não expulsa em voz. A perna dali não poderia ser retirada, ele não poderia sair do carro como em seu sonho, ele estava definitivamente preso a morte. Aquela barra de ferro era seu braço segurando-lhe a perna, traiçoeira e malevolente era ela porque segurando parte de si o tinha por inteiro, ele esbravejava mil e uma ofensas para alguém que talvez nem o pudesse ouvir. Deseja que aquele castigo termina-se como geralmente aqueles que aceitam que fim não justifica os meios, se aquilo o levaria morte, porque precisava passar por tudo aquilo? Quem mal fizera para tanto? Porque não levava de vez ,em vez o levar em parcelas? As pernas, depois quem seria escravo do fim? Indagar não era a solução mas a criação de novos problemas, o homem sempre fugindo de si e dos outros, as perguntas sem respostas o coloca em situação de vitima, já que ninguém poderá responder-lhe a altura, e mesmo ele não se questionava sobre quem dormira ao volante? Essas perguntas nunca permeiam a cabeça, a culpa é sempre algo alheio.

A chuva começava dar sua trégua assim como a noite, a luzes da manha surgiam até nos mais obscuros dos lugares, incluindo a sua vista, a nitidez dos olhos cortava o coração, a perna era algo incompreensível, de cor diferente, aquilo parecia muita coisa menos uma perna, perfurada por completa, imóvel dos dedos via-se apenas o caminho que o sangue decidiu seguir sozinho, a perna definitivamente tomou seu olhos a contemplação, muitos acreditam que a contemplação a vida é única que chama a atenção, mas a morte também intervém pensamentos que a vida não dá. A perna era seu centro, dali não tirava os olhos, cada gota de sangue que dali sai perseguia ate onde a vista não podia, a cautela em todos os movimentos para que essas não sofressem mais que haviam sofrido.

Um barulho tirou-lhe a concentração, uma barulho familiar, uma musica ouvida varias vezes, aquilo tocou seu peito de maneira que uma revelação veio a mente, o celular. Procurava a origem do som como caçador que procura pegadas de sua presa, mas estava próximo porem a distancia não importa muito se esta imóvel, na imobilidade tudo esta muito longe. Cada pausa que a musica fazia uma ansiedade tomava conta dos ouvido que aguçavam-se mais, e quando o som voltava a calma tocava o coração, tinha que encontrá-lo antes de parar, aquele era seu passaporte para salvação. Porem depois de repetidas vezes o som parou e ele não pode localiza-lo. Pareceu que sempre que dependia de algo a fora este o decepcionava, aos poucos uma individualidade tomava conta de si.

A tristeza apertava-lhe o coração mais que os ossos a carne, o pensar reflexivo sempre nestes momentos se tornam mais verdadeiros, talvez pela mascaras que mundo nos obrigue a manter, neste momento de nada valiam e de nada ajudava. Neste instante ele, o homem não parecia mais um homem, era um ser dentro do mundo, ele não era mais parte, mas o todo, aquele sentimento lhe deu uma liberdade que nunca tivera em nenhum momento da vida, por um instante achou que estava a morte a lhe chamar, e como ele mesmo havia sabido, aquela crença que antes da morte um julgamento solitário se estabelece por si e sobre si. Nessa reflexão ele adentrou no fundo de si mesmo, a visão entrou em um transe, os ouvidos caíram sobre um profundo silencio, um silencio que ecoa silencio, a dor lhe deixava as pernas e os braços e o corpo, todo o sofrimento estava a lhe abandonar. Ele mesmo sentia-se abandonar o corpo, sai andando pela floresta escura, e após uma chegar em uma clareira de imensidão que os gramados se perdiam no horizonte, a flores nascia como na primavera, brotavam do chão enchendo de cores os olhos, enchendo de perfumes as narinas, tudo em silencio absoluto, ele correria pelo jardim infinito sem ter onde chegar, caíra sobre o tapete perfumado das cores, ele deitava ao chão e abria o braços como se a tudo quisesse abraçar, ele não sentiu as pontas dos dedos se molharem, ele nem notou as costas não estavam mais no chão duro, mas boiavam sobre a água do mar, o peixes o tocavam a costa. O corpo navegava sobre um oceano sem fim, a luz do sol fora dividido em diversas estrelas, abrilhantavam o céu ate a lua o iluminar na imensidão do mundo, ali ele não estava a observar o mundo, mas o mundo estava a observá-lo, e por maior que fosse o espaço, por mais que este estivera solitário naquela imensidão. Foi a primeira vez que não se sentira sozinho, ele se sentira completo. No alto do céu veio a sentir o chamado percorre o corpo e corpo subia a água e voava ao céu para tocar-lhe as estrelas com as próprias mãos.

Estava indo longe e onde ninguém estivera. A distancia ao chão se tornava tão grande ele mesmo não já podia medir, e o céu estava tão próximo, as nuvens como por mágica lembravam feições conhecidas, de pessoas, de lugares, de objetos, ele viajava as nuvens e a cada uma que ele passava se desfazia muitas outras que derrubavam sua água pela terra de tão longe não se via, ele voava entre as nuvens da noite e as estrelas do céu ate uma imagem forma-se a frente, mas a luz da lua impedia de dar-lhe um rosto, ele se aproxima e este lhe estendia a mão para tocá-lo, e ele como num gesto natural de boas vindas estendia a suas. E ao tocar-lhe e a sombra retirar-se ao rosto, era ele mesmo, tocando a si mesmo, neste instante um medo possuiu a si mesmo, e a gravidade lhe puxava para baixo, e por maior esforço que aquela forma que lhe tinha a imagem e semelhança o tenta-se segura-lo ao céu ele descia, o som do grito fez esta solta-lhe a mão e ele caíra sem ninguém a segura-lhe as mãos, o silencio de súbito agora era o som do vento, do corpo descendo ao chão, com a maior velocidade que podia, num instante ele cortava as nuvens do céu chão que antes era tão longe era visto.

Ele em meio aquela queda livre reconhecera o lugar, da uniformidade que é o chão visto do céu como é o céu visto do chão, reconhecera as arvores, e como se cada coisa fora lhe criada naquele instante do ver dos olhos, a estrada ao chão se formava ate que a nuvens não impedia mais a visão, a curva que o tirou do caminho, mas afinal que caminho este estava seguindo? E na curva um carro parecia–lhe estar, e um homem a gritar, e muito próximo ele estava ao ate poder vê-lhe o carro amassado e atravessá-lo como se este não matéria fosse, ele se viu frente a frente com rosto sangrando e os olhos fechados ele entrou a carne.

Olhos se abriram como um relâmpago cai ao chão, inesperado e surpreendente com tamanha força que os ouvidos se assustam, e do silencio absoluto ele ouvia grito de alguém ao longe alguém o encontrara, sem forças nas cordas vocais este não conseguia responder o chamado, as mãos tentavam a comunicação sem sucesso, pois só para a vista que as mãos falam. E nesse tumulto de sensações esta tocara a o grito que ele não pode soltar, a buzina soava como um pedido de socorro, era de surpreende que e meio ao ambiente de morte restava uma vida e isso são o que a pessoas chamam de milagre. O homem descera a íngreme terreno ate se ouvir os passos próximos ao ouvidos que poderia este dizer que são seus. E como antes ele havia visto, o rosto de preocupação do homem ao desconhecido e o olhar encantado daquele que era a vitima, aquilo se tornava a mais pura das relações humanas, a solidariedade e o agradecimento, o que este falava não se era ouvido mas a pobre vitima sabia que e aquilo que ele faria, seja quem for ele chamara alguém para tira-lo de lá.

Os olhos viram a liberdade da luz que podia entrar onde houvesse alguém que pudesse recebê-la, já que a porta finalmente desempenhava seu papel, se abrira para finalmente tirarem-lhe das ferragens, assim se viu como as ferragens enterradas as pernas não são forte o suficiente do que a vontade do homem de viver.

Diegosolista
Enviado por Diegosolista em 14/07/2009
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