Estigma
Enquanto chovia violentamente na cidade, minhas concepções me enganavam dolorosamente. Revolvia-me na mente a ideia de perder a consciência, em especial num momento como aquele. Diante da escadaria do grande Theatro. Diante dela. Debaixo da chuva. O sol terminava de se pôr. A escuridão – aquela mesma, que nos assombra prazerosamente com aquela impiedosa percepção de primitivismo – invadia os cantos luminosos do céu. Fiquei parado perante aquela visão atormentadora e inconcebível; não podia ser, simplesmente, não podia.
— Eu já falei antes, não? — a voz de Ana, ao sussurrar aquelas palavras, era como uma maldição que perdura na estrutura mais interna da alma. — Não quero isso. Nunca quis. Você sabe. Forçar foi o maior erro de nossas vidas. Vá pra longe de mim. Esqueça o que fomos. Os aprendizados correm por trilhos diferentes. Vem cá.
Abraçou-me com ternura, deixando em mim aquele extasiante cheiro de seu perfume de todos os dias. A eternidade perdurou ali: o abraço se desfez, ela virou as costas, se foi e eu não tinha condição racional de expelir uma só palavra. Apenas suspirei, observando a distância entre nós aumentar, aqueles cabelos negros se agitando com o vento, encharcados de chuva. É melhor assim, pensei. Acabara. Talvez não para toda eternidade, mas, por hora, já começava a esboçar uma elucidação que proporcionaria uma dor que eu já previra. Quando minha visão não a alcançava mais, caí de joelhos diante da escadaria, fitando o solo molhado, na esperança de alguma sobrenaturalidade inesperada, mesmo sabendo que a espera era em vão. Não podia chorar. Não, ainda.
Em casa, minhas noções continuavam turbulentas. Uma música vinha martelando na minha cabeça desde o momento fatídico com Ana: Sometimes, da banda My Bloody Valentine. O início da letra soava egoísta, mas era o que eu me perguntava por alguns momentos; dizia: Close my eyes/Feel me now/ I don’t know how you could not love me... Ou, no nosso saudoso português: Feche meus olhos/Sinta-me agora/Eu não sei como você pode não me amar... Divagações à parte, o peso da perda momentânea começava a me afetar com força. Apanhei o telefone e disquei um número que me era rotineiro. No primeiro toque, atendeu.
— Alô? — disse uma voz masculina do outro lado da linha.
— Fala, Gabriel.
— E aí, cara.
— O silêncio. Não agüento mais. A solidão e o silêncio são duas maldições — falei quase sem medir as palavras, ou o tom em que as dizia. Mas Gabriel era certeiro em suas deduções; certeiro e desmedido.
— Ela te deu um fora definitivo, não é?
Levei a mão ao rosto, tentando abrandar a emoção dolorosa que me invadira no momento em que ele proferira aquelas palavras, mas era inútil. Talvez falar do assunto fosse mais fácil para destrinchar o processo de superação.
— Sim, é. Basicamente foi isso mesmo — disse eu.
As palavras seguintes de Gabriel, no entanto, foram previsíveis.
— Eu sei bem como é: e você sabe que eu sei. It’s over, man. Tu superas fácil. Você é mais forte do que pensa. Acredite, eu sei.
— Não, Gabriel. Só eu sei o que eu sentia. Nem disso você sabe. Egomaníaco dos infernos! — eu quase gritava no final da frase.
— Tudo bem, Vin. Mas pelo menos leve em conta a experiência que eu tive... Ou melhor, esqueça. O tempo vai te ensinar, assim como a mim. Também tenho muito que aprender, sabe. Sou um idiota, assim como você.
— E os ataques de esquizofrenia do seu pai?
— Mudança de assunto repentina assusta as pessoas, sabia? Esquece isso, vamos sair. No Terminal Santo Amaro, amanhã às 17h, ok?
Meditei por um segundo, concordando, por fim.
— Estarei lá.
O dia seguinte trazia sublimações disformes, não conseguia mais concentrar o poder da minha dor, por um instante cogitei a possibilidade de ela estar se dissipando mais rápido do que eu imaginara, mas era só respirar o ar com mais atenção que tudo voltava, dando cambalhotas, revoltadamente. As tentativas de reflexão eram falhas: todas traziam o rosto de Ana, pelos mais diversos ângulos. Coloquei meu sobretudo cinzento e parti rumo ao Terminal.
Cheguei lá com dez minutos de antecedência, mas Gabriel já me esperava; sozinho, a feição atemporal de indiferença, a sua marca registrada.
— Vamos, meu amigo — falou, ao ver a minha aproximação —, o tempo passa. Vamos beber alguma coisa e conversar.
Subimos num ônibus de sentido Centro. A poluição inundava minhas percepções, e imaginei que a mesma coisa deveria estar afetando Gabriel. Logo que sentamos, ele iniciou o assunto:
— Melhor?
— Até certo ponto. Isso não vai sarar, cara.
— Você sabe mais do que eu que só não vai sarar se você não quiser. Basta ser forte. Tem medo de perder o contato com ela, não? Pois esqueça isso. Há coisas mais importantes na vida para se preocupar. Não estou duvidando do seu amor por ela, muito pelo contrário. Você encontrará muitas outras possibilidades quando se permitir estar totalmente desapegado dela. Adquirirá experiência de vida. E, como o futuro é a maior incerteza que existe (pelo menos para nós, insignificantes humanos), quem sabe vocês não se reencontram e dão certo depois?
— Eu tenho esperança, Gabriel. Na teoria, é fácil tomar essas atitudes. Mas quando me vem as lembranças, a dificuldade é extrema. Não posso me ver longe dela. Não consigo imaginar tal coisa.
— Vin, acorde! Vocês mal tiveram uma relação! Durou duas semanas, cara! Você suportou um longo tempo sem poder tê-la e, quando teve, se apegou da pior maneira possível. A regra da vida é fazer justamente o contrário, Vin. Desapegar-se das pessoas. Elas vão e algumas vezes voltam, outras não. Raramente ficam o tempo todo conosco. Tem que entender isso, man.
— Se você estivesse lá no dia... A chuva gelada, a voz, o perfume dela... Foi na alma. Fui despedaçado. Não sei se reencarnação existe, mas, se sim, me atrevo a dizer que foi a angústia mais dilacerante de todas as minhas encarnações. Estou perdido, de verdade. Sinto a vontade e a possibilidade de abandonar a Ana da minha mente, mas não posso. Não por enquanto. Espero que passe. Tudo passa, não é o que dizem?
— Sim. Vai passar.
Descemos num ponto do qual mal me recordo e nos dirigimos imediatamente a um bar convidativo. Pedimos dois copos da boa e velha cerveja, ao passo que Gabriel, como sempre, retomava a conversa.
— A sua mente está empoeirada, Vin. É só uma questão de lucidez. O trabalho é um parceiro perfeito nessa sua luta contra o desapego. A dor é, de algum modo, edificante, justamente para que, ao sentirmos ela, adquirimos a capacidade de suportá-la e evitá-la.
— É, creio que sim. Nesses nossos raciocínios, tudo parece tão injusto. Difícil saber se realmente é ou não. Talvez não seja, talvez tenha algo maior por trás de tudo. Prefiro acreditar nisso. É mais fácil de viver, mais fácil pra morrer. Mas, como sempre dizíamos, nem sempre o que é mais fácil é o certo. Se não for, não faz diferença. Nem sempre o que é certo dá certo. Prefiro a comodidade mental, pra quê mais dores? Idiotice. Tenho a capacidade de desempenhar uma vida acolhedora, mas, assim como inúmeros outros, vivo criando problemas e sofrimentos onde não há. Pensemos nas crianças da África, esse velho clichê. O mundo é uma bagunça. Como diria o grande Rosa, em Grande Sertão: Veredas: “viver é perigoso.”!
Gabriel riu vagamente. Tomou um gole da cerveja e prosseguiu.
— Seres humanos são o que nós somos, my friend. Será que estamos aqui à toa? Prefiro não confabular nada; minha cabeça vive sossegada sem suposições. Ou pelo menos eu acho que vive. A dormência sempre vem no final, mas não há final, não é mesmo? Ou nós só apenas não queremos que tenha? Ah, que droga, comecei a filosofar mais uma vez...
Já escurecia. Pagamos a conta e, do lado de fora do bar, a lucidez parecia querer aumentar seu potencial ao invés de proporcionar exatamente o contrário, que é o que sempre esperamos do álcool. Olhei para o céu enegrecido e fechei os olhos: o rosto de Ana ainda estava lá, como uma espécie de vértebra imutável.
— Vamos, meu amigo, vamos embora — disse Gabriel.