Tá osso, Cinderela!

Cinderela já estava farta daquilo tudo. Desde que sua mãe e seu pai se divorciaram era como se a casa já não fosse a mesma. Seu pai contraiu união estável com uma mulher e a piriguete estava morando no castelo.

Não havia palavra que se adequasse melhor, no entender de Cinderela, à situação que envolvia o casamento/união estável, ao menos àquele relacionamento que seu pai vivia: havia CONTRAÍDO, como se doença fosse. O velho parecia enfeitiçado, não enxergava mais nada além da jovem senhora que insistia em lutar contra o tempo (e estava perdendo a batalha) e vivia na academia, correndo pelo bosque, alimentava-se quase que exclusivamente de maçã (Cinderela já havia pensado em procurar uma velha senhora que preparava maçãs especiais, mas, ah! deixa pra lá...), cremes, cirurgias plásticas... era um inferno.

E as filhas? Meu Deus... as filhas da mulher eram as pessoas mais sem noção que existiam naquele reino! De cara, se apossaram do quarto de Cinderela sob a alegação de que era maior, cabia duas camas... .e o pai concordava com tudo: “sim minha princesa, vamos facilitar as coisas. Você pode ficar com o outro quarto que te acomodará perfeitamente! Seja gentil com suas novas irmãs!” IRMÃS É O CACETE! Aquelas versões mirins da perua mor não eram suas irmãs nem aqui e nem na China. “_ Ora! Era só o que faltava!”

Aquele dia Cinderela acordara com disposição de não deixar barato. Estava cansada de tanto insulto, de tanta exploração! “_ Não! Chega!” Tinha pagode nas proximidades da muralha do Castelo vizinho porque o filho do nobre que ali morava estava chegando de uma temporada no exterior. E desde que fora anunciada a festa todos estavam em polvorosa! As pseudo-irmãs estavam alvoroçadas, achando que iam arrasar com o coração do gatinho.

A mãe, que sempre apoiava as loucuras das moçoilas, mais uma vez estava ao lado daquela sandice: falava o dia inteiro na cabeça das duas, como que incentivando uma guerra entre elas. Afinal de contas, as duas haviam começado e interrompido a faculdade, não tinham muito jeito com os estudos, não sabiam cozinhar, nem bordar, nem fazer nada que prestasse. Precisavam mesmo conseguir bons casamentos.

Quando viu a mais velha das “irmãs” (e , por sinal, a mais feia!) usando seu jeans recém chegado dos EUA, Cinderela não pode acreditar! Era demais! Além do que, estava pregada na geladeira uma lista enorme de tarefas que Cinderela deveria cumprir ainda naquele dia porque, as bonitas tinham que se preparar para o pagode.

Já se aproximava a hora da festa e Cinderela estava morta de cansaço. Queria muito ir à muralha, mas o desanimo lhe dominava. Bem quando sentou-se para descansar um pouco o interfone do castelo tocou e Cinderela foi atender. Era a agente do PSF. Senhora de meia idade, simpática, gostava de conversar com Cinderela. Sentaram-se ambas no sofá da sala e a agente, começou a perguntar se aquele visível desânimo de Cinderela era doença ou se a moça estava só cansada. “_ Queria muito ir ao pagode!” Cinderela confessou. “_ Mas a madrasta não deu sossego para que eu me arrumasse; foi um afazer atrás do outro! Dizem que o vizinho é uma graça. Parece que não vai ser dessa vez que nos conheceremos!”

Mas, a agente do PSF estava realmente indignada com aquela situação. Já conhecia a madrasta e suas filhas horrendas. Nenhuma delas tinha um pingo de educação! Tratavam as outras agentes do PSF e as moças da dengue como se fossem lixo! Ora, pois! “_Isso não vai ficar assim”!

Como num passe de mágica, a jovem senhora fez algumas ligações e resolveu tudo: roupas, cabelo, maquiagem, tudo estava às mãos e Cinderela iria linda ao pagode. “_ Onde já se viu?!”

Chegando à festa da muralha, Cinderela de cara avistou as duas filhas da madrasta. Uma delas usava o jeans de Cinderela, a outra, usava as sandálias maravilhosas que Cinderela havia ganhado.

Dança pra lá e pra cá, pagode cortando na alta, a noite ia começando a esquentar. O vizinho não tirava os olhos de Cinderela que estava numa roda de amigos, sambando como uma louca. Cabelos esvoaçantes, a cinturinha como que de pilão, Cinderela estava arrasando. No entanto, num dado momento, lembrou-se de que havia combinado com a agente do PSF que estaria de volta para o castelo antes do fim do seriado que passava depois da novela das 21 horas. E o vizinho, até então, só olhava Cinderela, de cima abaixo, como que procurando decorar, gravar cada pedaço dela... Contudo, valeu a pena, ao menos tinha sido notada! A partir de então, era só o vizinho tentar uma aproximação, já tinham até trocado sorrisos.

Na correria para pegar o moto-táxi que ficava na esquina perto da muralha, Cinderela acabou perdendo um pé de sua sandália preferida. Era uma Wild Rose lindíssima, daquelas que abotoam no tornozelo, 12 centímetros de salto! Na correria, o salto se quebrou porque a ruela nem era asfaltada, era pedra só! Mas, Cinderela chegou em casa feliz, tinha certeza de que o príncipe a procuraria. Ele não havia tirado os olhos dela! Por certo, estava apaixonado.

O dia amanheceu, as horas se passavam e Cinderela cantava como um pássaro! Ô felicidade! De repente, o interfone do castelo tocou e Cinderela voou para atender. Era ele, o vizinho! Tão lindo quanto um príncipe. E estava com a sandália de Cinderela nas mãos.

“_ Oi querida”! disse o vizinho.

Cinderela levantou uma sobrancelha. “_ Faça o favor de entrar”.

Ele entrou, andar meio inseguro.

Sentou-se bem na pontinha do sofá, cruzou as pernas.

Uma das mãos repousava por cima do joelho, a outra segurava a sandália sem salto, quebrada.

“_ Um pecado!” Foi assim que ele definiu o fato de tão lindo calçado ter se quebrado. “Mas, por favor, me diga onde você comprou essa preciosidade porque eu PRECISO encontrar uma em tom vermelho”.

Ele olhou para ela a noite inteira, no dia anterior, quando então avaliava o conjunto e constatava o bom gosto de Cinderela para se vestir, a maneira como jogava os cabelos e, principalmente, aquela bela sandália abotoada nos tornozelos.

Definitivamente, não estavam boas as coisas para Cinderela.