a garota da porta ao lado
Ela rolava de rir, gargalhava. Ele sorria largamente e algo em sua cabeça lhe dizia que tudo estava dando certo.
Pode se dizer que se conheciam a vida toda. Eram vizinhos de porta a dez anos. Ela a vira crescer. Ainda se lembrava da primeira vez em que a vira, tinha oito anos, ela, nove. Ele brincava no pátio do prédio quando o caminhão de mudanças chegou acompanhado de um carro de onde desceram um casal e sua filha. Ela sorrira para ele na ocasião, mas logo virara o rosto. Envergonhada. Dois meses depois já brincavam juntos no parquinho e desde sempre se afeiçoara muito a menina da porta ao lado.
Brigaram quando ela tinha treze anos. Sentia ciúmes dela com outro garoto do prédio e passara a tratá-la mal. Ela ficou triste e discutiram. Deixaram de se cumprimentar nas escadas, passaram a não se ver com tanta freqüência. Mas sempre que a ouvia sair de casa, era impossível não se deixar levar pela lembrança do toque da sua pele na dele.
Aos quinze ele pediu desculpas e eles voltaram a conversar, as vezes. Ela namorava, ele também. Mas não conseguia refrear o impulso de espiar pelo olho mágico toda vez que ouvia a chave girar na porta vizinha com esperanças de vê-la entrar ou sair. Ela estava cada dia mais bonita. Deixara pra trás o corpo, as roupas, as atitudes de criança. Não conseguia deixar de reparar o quanto ela ficara linda. E quase todas as noites flagrava-se pensando nela antes de dormir. Quando fez dezesseis ela lhe trouxe um presente. Era uma almofada em formato de um monstro roxo, no estilo de toy arte. Disse-lhe que ela e uma amiga estava lançando uma marca e essa era a primeira peça dela, e que ela queria dividir com alguém especial. Ele teve que segurar a lágrima. Voltaram a se falar quase diariamente. Ele tinha uma banda de garagem e ela virou fã número um dos riffs de sua guitarra. A namorada dele não agüentou a pressão e terminou, e não se pode dizer que o garoto ficou triste. Daquele momento em diante ficaria livre para esperar por ela. A garota sentia o mesmo mas não queria admitir, todas as amigas diziam que ela tinha o namorado perfeito e não devia troca-lo pelo garoto da porta ao lado. Se deixava levar. Quando ela fez dezoito ele levou uma garrafa de vinho até o quarto dela, e eles beberam ouvindo uns cds e batendo um papo. Foi a primeira vez que rolou um clima, mas ela não se permitiu levar o clima adiante. Em duas semanas terminou com o namorado e em outras duas armou tudo para que pudesse enfim se entregar ao vizinho. Amava-o, não podia negar, amava-o desde que o vira pela primeira vez anos atrás, no pátio do prédio. Na noite anterior a execução do seu plano, bateu na porta dele, e em menos de cinco segundos ele girou a chave para atendê-la. Fez sua mão sem aliança ficar visível, e convidou-o para jantar no dia seguinte, disse que estava com saudades e que fazia algum tempo que não conversavam. Ele aceitou quase não conseguindo desviar o olhar de seus dedos nus. Não dormiu durante toda a noite pensando nela. Se sentiu um adolescente bobo mas ficou feliz com isso. Era o adolescente bobo prestes a conseguir o que queria. Só conseguiu pregar os olhos as seis da manhã, e nem foi pra faculdade de tão ansioso. No ensaio da banda conseguiu trocar as músicas e as letras. Quase tropeçou na rua na volta pra casa. No caminho comprou uma rosa vermelha e outra garrafa de vinho, ponderou se precisava de duas dessa vez, mas ignorou o fato. Ela estava sem aliança dessa vez. Ela também não foi pra aula, mas dormiu como um bebê. De manhã fez as unhas, de tarde, o cabelo. Ouviu música e fumou um beg pra acalmar. Pediu comida pronta pra não estragar o esmalte recém passado e abriu uma garrafa de vinho. Verificou a cama, o sofá, o banheiro. Tudo tinha que estar perfeito. Ela sonhava com isso desde que tinha nove anos de idade. Ele apertou a campainha tremendo e ela girou a chave confiante. Cumprimentaram-se com um largo sorriso. Ele tinha uma flor e ela as taças na mão. Convidou-o a entrar enquanto murmurava para si que ele era o garoto da sua vida. Uma rosa vermelha, que coragem. “Cadê seus pais?” ele perguntou. “Tão viajando” ela respondeu. “Eu bem que percebi, faz algum tempo que eu não os vejo, voltam quando?” “Daqui uma semana acho”
Beberam, comeram e beberam mais um pouco. O jantar foi agradável regado a vinho e rock das antigas. Divertiam-se, muito. Ele, já meio alto, começara a falar bobeiras e ela ria escandalosamente. Ela o convidou para ver algo no quarto e ele a acompanhou. Sentaram na cama, muito próximos, e ela puxou um álbum de fotografias de quando eram crianças. Riam e relembravam momentos até que o álbum acabou. “É, daí você parou de falar comigo” ela disse com simplicidade.
- Mas também, você tava com aquele Mauro do quinto andar. – ele disse com a voz afetada, fazendo biquinho, quase bêbado.
- Pra te fazer ciúmes! Pelo visto consegui né? Você nunca mais falou comigo, até a gente fazer quinze anos. – ela comentou sorrindo.
- Me fazer ciúmes? Eu queria arrancar a cabeça dele fora, puta que pariu, tinha vontade de matar o garoto toda vez que ele babava em você quando te beijava. - Ela começou a rir escandalosamente, e ele percebeu que por mais que estivesse meio alterado pelo álcool, tudo funcionava como ele sabia que devia funcionar. E tudo daria certo como ele sabia que daria certo. Era o destino de ambos ficarem juntos. – Ei, pare de rir e me diga, ele babava mesmo não?
Ela se silenciou e olhou nos olhos do garoto da porta ao lado que agora estava exatamente ao seu lado, com a mão em cima da sua coxa, fazendo adormecer a pele que estava em contato com sua mão fria. Sorriu de volta para ele, com um olhar envergonhado e se aproximou lentamente. “Desculpa não ter feito isso antes”. Beijou-o. Ele sentiu seu corpo arder quando entrou no compasso, sempre quisera tanto aquela menina e agora ela estava ali, beijando-a. Sorriu por dentro e se deixou levar. Ela separou os lábios dos dele primeiro, olhou-o nos olhos e disse “sim, ele babava, e era péssimo. E conseguiu ficar pior depois que você parou de olhar na minha cara, seu babaca! Nem depois daquele sacrifício todo de pegar o Mauro do quinto andar você olhou pra mim com outros olhos.”
- Bobeira sua vizinha. Eu sempre te olhei com outros olhos. – e então ele fez aquilo que queria fazer a dez anos. Beijou a garota da porta ao lado e ela correspondeu.