Corbu
Seis meses foi o período que durou a vida conjugal de Carlos e Marina naquele apartamento da Plácido de Castro. O imóvel, presente do senhor Velásquez, continua lacrado para as investigações policiais.
Como era de seu costume, uma semana antes da noite de natal o senhor Velásquez perambulava pelas lojas da Júlio de Castilhos conferindo preços, calculando promoções e arrematando sacolas e mais sacolas de presentes para os seus queridos familiares. Ao passar pela vitrine de uma imobiliária, avaliou as ofertas das pequenas tiras de papel e escolheu uma. Acertou os detalhes diretamente com o diretor de aluguéis e voltou para casa contente com a decisão que tomara.
- Marininha, minha filha, venha conversar com o papai.
- O que é, papi?
- Há quanto tempo tu namora o Carlos?
- Cinco anos, papi. Por quê?
- Se lembra da última ceia de natal quando conversamos sobre a tua saída de casa?
- Como se fosse ontem, papi. O senhor ficou tão brabo com a proposta do Carlos que chegou a jogar farofa nele.
- Pois eu repensei a questão, e vocês têm a minha bênção para morarem juntos.
- O quê? Jura? Eu não acredito!
- Sim, eu juro. Já aluguei um apartamento para vocês, só falta assinar o contrato. Os dez primeiros meses de aluguel são por minha conta. Veja isso como um voto de confiança.
Todos diziam que Carlos e Marina formavam um casal sereno. Nunca foram vistos discutindo sobre seja lá o que for. Na verdade, nem falavam um com o outro quando estavam na companhia dos amigos.
Após tanto tempo de namoro, Marina se acostumou a dizer que tinha um relacionamento moderno com Carlos; ‘Casar, jamais!’, respondia às investidas da mãe. Para Carlos o que os dois viviam juntos era uma espécie de comensalismo social; ‘Ela constrói, eu derrubo’, foi sempre a resposta quando os amigos de cervejada das segundas, quartas e sextas à noite queriam saber sobre as suas intenções com Marina. Ela era formada em arquitetura. Ele, empregado de uma empresa de demolição. Juntos formavam um casal ‘maniqueísta’, rótulo ao qual sempre concordaram.
No dia seguinte à assinatura do contrato o jovem casal tomou posse do pequeno apartamento. Cada um trouxe o que tinha de casa, o que não era muito; ‘O suficiente para começar a viver’, sentenciara alegremente Marina. O imóvel era espaçoso, bem dividido, arejado e com vista privilegiada para o parque Maesa. O ambiente do apartamento, depois que os móveis foram dispostos nos seus lugares, não ficou com a cara de um tampouco de outro, exceto pelo único adorno: um quadro retratando Le Corbusier; o Corbu, como Marina chamava-o carinhosamente.
Corbu foi pregado na parede da sala um pouco à esquerda do sofá, oposto à televisão. O buraco para a bucha e parafuso foi feito por Carlos, sob a vigilância atenta de Marina.
- Aqui não vai atrapalhar para assistirmos tevê, Má?
- Como pode atrapalhar, Carlos? A televisão está ali do outro lado!
- Não vou conseguir prestar atenção na tevê com esse cara me olhando.
- Não seja besta! É exatamente aí onde quero que Corbu fique. Com o tempo tu nem notará que ele está aí.
Corbu era um homem já maduro, cabelos grisalhos lambidos para trás, rosto comprido (quase eqüino), grande nariz adunco, e, sobre este, óculos com grossos aros pretos. Porém, o mais fascinante em Corbu eram os olhos. Ele tinha um olhar penetrante, quase obsceno, daqueles que dissecam aquilo que olha. Carlos deu a seguinte definição para o olhar de Corbu: ‘Parece que acha tudo grotesco!’
Nas primeiras semanas Carlos evitou sentar-se no sofá, preferia fazer qualquer outra coisa em outras partes do apartamento, só para não entrar no raio de visão de Corbu. Quando chegava em casa um pouco alto por causa da cervejada com os amigos, ousava colocar-se na frente de Corbu e falar baixinho, mas nem por isso com menos raiva: ‘Sou eu quem manda aqui, viu?’, e saía rápido para o quarto com a impressão de que Corbu o alvejaria com sua sentença ácida: ‘Grotesco!’
Num domingo modorrento, Carlos decidiu encarar as angústias suscitadas por Corbu. Sentou-se no sofá para assistir ao jogo do Ju, ‘O melhor time da Serra’, como ele acreditava, mas não viu o primeiro gol de seu time, marcado aos sete minutos do primeiro tempo. O juiz apitou o início da partida, Carlos sorveu um gole de sua lata de cerveja e começou a dar olhadelas para Corbu. Depois de quatro minutos não lhe saía da cabeça que Corbu estava olhando-o fixamente. Aos cinco minutos Carlos ouviu a suposta voz de Corbu dizendo-lhe ‘Carlos é grotesco!’. Não agüentando mais, levantou-se e foi arrumar a pia do banheiro que há dias não parava de pingar.
Após esse fato, tornou-se impossível para Carlos olhar Corbu e não ouvir a tal voz chamando-lhe ‘Grotesco!’. Ele tentou conversar com Marina para retirarem o quadro da sala, mas ela foi irredutível, ‘Onde Corbu está, fica’.
Em poucas semanas a situação começou a importunar tanto e de tal forma que, quando Marina não estava em casa, Carlos passara a tirar Corbu da parede e colocá-lo ao seu lado no sofá. ‘Está a fim de um filminho, Corbu?’, perguntava ironicamente. Foi a libertação e o fim para Carlos.
Com esse desesperado estratagema, Carlos se sentiu estranhamente confortável tendo Corbu como companhia para as horas vazias nas quais Marina não estava em casa. Adotou-o como comportamento de sobrevivência.
Os negócios para Marina iam maravilhosamente bem. Seu pequeno escritório havia sido contemplado na licitação do município (não sem ter um dedo do Senhor Velásquez) e, assim, ela passava cada vez menos tempo em casa. A demolidora onde Carlos trabalhava sofreu severos cortes de gastos e se viu obrigada a trabalhar meio turno, tendo Carlos que passar as tardes em casa, invariavelmente na frente da televisão, com Corbu ao seu lado.
A amizade e intimidade entre eles cresceram frondosamente. Assistiam juntos a documentários, desenhos, filmes, telejornais; sempre com Carlos tecendo alegremente comentários sobre os programas. Quando Marina se viu obrigada a ausentar-se de casa por um dia para atender ao pedido de um cliente do escritório, Carlos aproveitou para preparar para Corbu uma receita de carne com ovos que aprendera num programa de culinária que assistira dias atrás.
Carlos se tornou fascinado pela companhia de Corbu. Já não conseguia mais estar em casa sem seu amigo ao lado. Passou a levantar-se no meio da noite, cuidando para não acordar Marina, para assistirem ao campeonato mundial de rugby. Os amigos de cervejada foram esquecidos e não eram mais necessários, o emprego foi taxado como supérfluo, pois tomava dele o tempo que poderia estar em casa.
No fim do sexto mês que haviam se mudado, a amizade entre os dois estava solidificada, só havia Corbu para Carlos. Nesta data Marina fez uma viagem mais longa, ficando uma semana longe de casa. A alegria de usufruir tanto tempo sozinho com Corbu estava estampada no rosto de Carlos. Ele radiava felicidade.
A viagem de Marina coincidiu com as primeiras rajadas de um vento gélido que só os serranos conhecem. Os dias se tornaram cinzas e chuvosos. Carlos, dividido entre ficar debaixo das cobertas e estar ao lado de seu amigo, se decidiu: levou Corbu para a cama. Assim se passaram dois, três, quatro dias. Carlos perdeu a noção do tempo, acabou passando uma semana na cama com Corbu.
No retorno de sua viagem, orgulhosa pelos resultados positivos alcançados, Marina ficou surpresa por encontrar tudo da mesma forma que deixara. Entrou na sala pé ante pé, estranhou a calma do lugar e notou que havia só o parafuso na parede de Corbu. Ao entrar no quarto surpreendeu Carlos dormindo, abraçado a Corbu.
- O que é isso, Carlos?
- Não... não... não é nada disso que tu está pensando, Má! – levantando-se da cama num só pulo.
Marina foi até a cama batendo com força os tacos do sapato, lançou longe as inúmeras cobertas, pegou Corbu e posicionou-se ao lado da janela. Tremendo de raiva, abriu-a e jogou Corbu. Carlos ficou atônito, brotaram-lhe lágrimas nos olhos e ao levantar-se da cama sentiu as pernas fracas. Com passos hesitantes chegou perto de Marina, olhou-a nos olhos e disse:
- Tu é grotesca! – e pulou atrás de Corbu.