Passatempo

Não me recordo com precisão do primeiro momento em que a vira, porém sei que de imediato chamou-me a atenção, e não podia deixar de ser, pois creio que seja impossível que passasse despercebida, com seus ares intrigantes - parecendo implorar para ser devendada. Ah, como era fascinante...

Eu a observei durante certo tempo, já que costumávamos freqüentar o mesmo pub perdido e imundo, recheado de maus elementos. Ela estava sempre sozinha, certamente não por falta de companhias, provavelmente por vontade própria, por manter sua posição estratégica, de observadora - o que a tornava ainda mais instigante -, petrificou-se em minha mente sua figura sentada num canto mal iluminado empunhando um copo de bebida barata, quase sempre pela metade, ao lado de um cinzero transbordante, consequência dos cigarros fumados compulsivamente. Seus cabelos e roupas expunham vergonhosamente um pouco do que havia em seu interior - uma personalidade absolutamente cativante, eu diria - assim como seus trejeitos, ora lentos e ritmados como se houvessem sido cuidadosamente pensados, ora desesperados e descuidados. Seus olhares fixos em pontos ignotos perdiam-se por instantes percorrendo o ambiente, e logo focavam-se novamente na bebida, nos cigarros ou na mesa torta de madeira velha e lascada.

Parece absurdo o modo como me interessava tanto por aquela desconhecida, para mim também o era, mas tornou-se inevitável, de tão inebriante que era o simples fato de vê-la de longe uma ou duas vezes por semana. Além disso, passava as noites indagando-me se voltaria a vê-la na semana seguinte, se a encontraria numa esquina qualquer, numa livraria, num café, do lado oposto da rua, talvez com amigas, com a mãe, com um namorado, com filhos. Ficava a imaginar como poderia ser sua vida, se estudava, se tinha um bom emprego, ou se era uma fracassada como eu, e confesso, divertia-me muito toda essa estupidez.

E foi numa dessas noites desimportantes de goladas de whisky vagabundo ao som de um terrível grupo de jazz que troquei as primeiras palavras com o motivo de minhas insanidades, e elas não foram exatamente o que se pode chamar de gentis, mas não se pode esperar gentileza quando um desconhecido bêbado derruba bebida em sua bela camiseta de alguma banda antiga que não me lembro no momento.

" Maldito" foi a primeira palavra que escapou de seus lábios de um tom escarlate bem vivo, já um pouco borrados pelo copo. Desculpei-me e ofereci-lhe o casaco, alegando que a noite estava fria e ela não deveria continuar usando a porcaria da blusa ensopada, ela inicialmente não aceitou, porém com alguma relutância o pegou e permitiu que a acompanhasse até o lugar onde morava. Saímos do pub para adentrar o vento gelado e cortante das ruas nova iorquinas. Caminhamos algumas quadras, terminando o whisky e um último maço de cigarros e conversando sobre trivialidades, acompanhando momentos de silêncio constrangedores nos quais eu podia ver quando ela abaixava a cabeça e sorria acanhadamente com as mãos enterradas nos bolsos do meu casaco.

Não demorou para que chegassemos a um bairro que eu não conhecia bem, no subúrbio, e pararmos em frente a um prédio de apartamentos de aparência pobre e mal cuidado. Ela agradeceu a companhia e disse que precisava subir, não me convidou a acompanhá-la, e nem imaginei que o faria, apesar de desejar que acontecesse, queria ver sua casa, seus móveis, sua vida e saber se tudo aquilo que imaginara faria algum sentido, além da vontade de prolongar ao máximo os segundos ao seu lado.

Ela se foi. E eu?

Voltei ao pub, e nunca mais a vi.

L
Enviado por L em 08/07/2009
Reeditado em 09/07/2009
Código do texto: T1689533
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