AS OBSESSÕES DE LAURO

Eu trabalhava como caixa numa livraria no Centro da cidade. Era um serviço meio estressante, mas que me proporcionava alguns momentos divertidos. É que alguns rapazes acabavam me deixando o número de seus telefones ou – os mais saidinhos –, me convidavam para jantar após o expediente. Cantadas, sim, mas nada mais que cantadas, que eu tratava de esquecer logo depois. Ria delas, até.

Mas havia um homem que todos os dias estava lá na livraria. Sentava-se na nossa lanchonete, pedia um café com alguns biscoitos e, de sua mesa, me fitava incansavelmente. Eu tinha muito medo. Ele me olhava de forma tão esquisita. Era um misto de desejo e psicopatia quase. Perto dele as outras cantadas pareciam mais com aquelas cartinhas que recebemos dos meninos, no tempo da escola. A coisa ali parecia muito mais séria.

Ele era um senhor já, mas não um senhor feio. Muito pelo contrário: possuía os cabelos levemente grisalhos, porém, o rosto, apesar de também expressar certa maturidade, passava a jovialidade que, de certa forma, atraía olhares. Além de estar sempre muito bem arrumado.

Depois de tomar o seu café com biscoitos, ele rodava a livraria a se apossar de uma quantidade enorme de itens; de gibis a livros de culinária. Depois de um tempo eu percebi que aquela quantidade era justamente para que o seu atendimento fosse bastante demorado.

E lá vinha ele com aquela pilha de livros.

- Hoje, levarei só isso – dizia ele sorrindo, em tom de piada.

- OK – eu dizia sem dar trela.

- Está tão séria! O que houve? – ele tentava um assunto.

- Nada.

- Mas está sempre tão sorridente!

- Não sei desde quando! Estou sempre séria. Afinal, aqui é o meu local de trabalho.

- Sim, mas um bom atendimento depende, principalmente, de um sorriso no rosto, não?

- Nem sempre.

- Bem, acho que você não está para papo, não é?

- Desculpe-me, senhor, mas é que são muitos itens que está levando. Eu não posso perder a atenção, entende?

- Claro, perfeitamente.

- Obrigada.

O tempo todo em que eu operava o caixa, aquele senhor me olhava. Certa vez, ele chegou a tentar retirar a minha franja, que estava na direção dos meus olhos.

- Pode deixar, senhor – eu dizia.

- Mas não a incomoda?

- Sim, mas pode deixar.

Os “foras” que eu lhe dava pareciam ajudar ainda mais naquela fissura que ele tinha por mim.

Por várias vezes tive vontade de sair daquele emprego, mas eu dependia muito daquele dinheiro. Cheguei a comunicar à minha gerente sobre as atitudes daquele senhor, a fim de que tomasse alguma providência. Sei lá qual! Mas ela:

- Francine, entenda que ele é um cliente que nos rende muito!

- Mas ele só aparece por aqui e compra aquele monte de livros por minha causa! Eu tenho medo dele, D. Regina! Muito medo!

- Minha filha, ele não a fará mal algum! E se a sua beleza está ajudando nas vendas da loja, que motivo eu tenho para mudar isso?

- Não pensa na minha segurança, não é?

- Segurança, Francine? Pois saiba que se eu fosse você, tratava era de dar uma chance para ele! Sabe quem ele é?

- Não! E nem quero saber!

- Mas direi! Ele é o dono desse hospital aí em frente!

- E daí?

- E daí que ele é podre de rico, Francine! Vai desperdiçar? Outra vem e pega, hein!

Confesso que, naquela tarde, diante da minha total falta de grana, pensei seriamente na dica de D. Regina. Ora, ele era um senhor bonito. Embora eu não soubesse como meus pais aceitariam essa história, já que eu tinha apenas vinte e um anos, resolvi que iria dar uma chance àquele senhor.

No dia seguinte, lá estava ele, na mesma mesa, tomando o mesmo café com biscoitos e me fitando da mesma maneira obcecada.

No caixa:

- Hoje, levarei só isso – como sempre, dizia ele.

- Como faz para ler tudo isso? – eu perguntava.

- Quem disse que os leio?

- E porque os compra?

- Somente para ter esse momento prazeroso que é falar com você, Francine.

- E qual o seu nome?

- Lauro.

- Prazer.

- O prazer é todo meu. Que horas você sai daqui, Francine?

- Às oito.

- Posso passar aqui? Podemos jantar... Eu preciso muito conversar com você... Eu...

- Eu vou aceitar, Lauro.

- OK! Combinado! Às oito!

- OK!

Pontualmente, Lauro aparecia frente à porta da livraria.

- Podemos? – dizia ele.

- Sim! Mas para onde vamos?

- Se não se importar, mandei preparar um jantar especial lá em casa.

- Na sua casa?

- Sim. É aqui perto. Que tal?

- Tudo bem.

Eu passava a o achar um doce de homem. Ele era a gentileza em forma de gente. No caminho – íamos a pé mesmo – ele me dizia coisas tão românticas.

- Eu cheguei a pensar, Francine, que nunca teria a chance de lhe dizer que...

- Que o quê?

- Que tu és a menina mais linda que já vi em toda a minha vida!

- Que exagero, Lauro.

- Não, não é!

Ao entrar na casa de Lauro, logo na (enorme) sala, avistei a pilha de livros que ele comprava diariamente comigo.

- Você não os lê mesmo – eu dizia apontando para a pilha.

- Apenas alguns. Os que me interessam.

- E o que lhe interessa?

- Armas.

- Armas? Pensei medicina.

- Também, mas meu interesse maior, no momento, são as armas!

- Você tem armas?

- Sim, algumas. Quer ver?

- Melhor não, eu acho.

- Você vai gostar.

Lauro me levava até uma outra sala. Em meio a quadros e esculturas enormes, centenas de armas de todos os tipos ajudavam na decoração.

- Não são lindas? – perguntava-me Lauro.

- As esculturas? São!

- As armas!

- As armas? Não acho muito.

- Espere até experimentá-las.

- Não acho uma boa ideia, Lauro.

- Por que não? Olhe esta faca! Que lâmina! – Lauro dizia passando as costas do cortante em meu braço.

- Credo! Não faça isso! Não íamos jantar?

- Íamos, Francine, mas acho que temos coisas mais interessantes a fazer.

- Como o quê?

- Como isso! – Lauro encostava a lâmina em meu pescoço.

- Pare com isso, Lauro! Não estou gostando!

- Mas vai gostar!

Num reflexo que nem eu mesma sabia possuir, afastei seu braço armado de meu pescoço e tomei o caminho até a saída daquela mansão. Com as portas já trancadas, aquela casa tornava-se um imenso alçapão, onde a presa era eu.

- Volte aqui! – ele corria atrás de mim afoitamente.

Naquela extrema loucura, Lauro acabava se desequilibrando ao correr daquela forma; e, ao cair, fincava, sem querer, a faca em seu peito.

Fiquei ali. Vi toda o agonizar de Lauro sem dar um pio. Até a chegada da polícia eu só pensava na cilada em que me metera e nas outras cantadas mil que, por alguma razão, não dei atenção. Senti saudades das cartinhas e da inocência que era o “paquerar” de minha adolescência. Maldito amadurecimento. Maldita mente adulta.