SANGUE
Talvez fosse o pesadelo da noite anterior; estresse também poderia diagnosticar as sensações que durante o dia tomou-lhe conta. Mas havia a hipocondria que há muito deixara de dar sinais e provavelmente teria voltado.
Saindo do trabalho, a rua movimentada, o fusca não atropelou. Estranho, após a mancha verde se perder num cruzamento, pensar que poderia, de súbito, num instante, que pelas sensações já instigava algo de trágico, se ver rodeado por pessoas estupefatas admirarem seu sangue tornar-se uma pintura de Pollock e, com o auxílio da chuva que desabaria, esparramando-se sem que as pessoas, agora dispersas por causa da tempestade, vissem, quem sabe, uma Mona Lisa manifestar-se magicamente no asfalto. Estranho que tudo venha a um passo da porta.
Quem vinha atrás, talvez aproveitando-se do titubear do primeiro passo, joga seu corpo sobre o corpo parado e este cai de alma contra o piso: olhos fechados, abertos, piscando assustados e sem compreender. E a chuva principia. Aglomeram-se pessoas.
Esboça um sorriso.
Alguém arma um guarda-chuva, os outros se dispersam.
Olhos piscando, sorri.
Colocando-se em pé, segue o olhar de quem observa. Fitavam as manchas no chão.
Sorriu novamente. O sorriso e a contemplação tem a duração de uma nuvem que aos poucos dissipa seu peso e é carregada pelo vento.
A pintura, sem que notasse o artista, desaparece no bueiro. O observador não mais fita o chão onde há pouco esteve a história, tampouco o artista. Com pesar, talvez pense como o belo está em decomposição, talvez não pense em nada. Quisesse observar mais, daria uma rasteira e a Capela Sistina ressuscitaria com Michelângelo incorporado no artista que via no observador um milagre.
Quão produtivo se converte o dia quando um fusca verde dobra um cruzamento. Daria seu sangue se fosse útil, mas é tinta, instrumento. Exitaria na linha tênue entre a guia e o asfalto para que a mão de um artista fizesse de si matéria para posterior observação.
Talvez seja efeito do pesadelo ou estresse que faz olhos piscarem e sorrisos esboçarem de contentamento.
Sangue fosse verde também o fusca viria de sua veia, o cruzamento linhas apenas e a existência transtorno de quem a tivesse criado sem propósito, um pesadelo somente e posterior despertar e interrogação inútil e um tropeço ao primeiro degrau.