AZUL PISCINA
Calor! Muito calor! No verão, o Clube dos Líderes ficava entupido de gente. Eu chegava cedo. Não gostava de ficar disputando as melhores mesas – as que ficavam à sombra. Antes do clube se transformar num verdadeiro formigueiro, eu já estava acomodado e com no mínimo cinco cervejas na mente. Ah! E com algumas voltas dadas naquela piscina maravilhosa também, claro.
A piscina não chegava a ser olímpica, mas se mostrava bem extensa para um cara feito eu, desligado aos exercícios físicos. Ela tinha o formato de um “L” e dividia-se em três profundidades diferentes. Após cada mergulho, na saída da piscina, minha respiração se apresentava mais ofegante. Mas eu gostava. Era um mergulho e uma cerveja.
Mais tarde, por volta da hora do almoço, o clube se transformava no formigueiro em que eu falei ainda pouco. Crianças e jovens, em sua predominância, ocupavam todo aquele “L”, mais o campo de futebol, a sala de jogos e todo e qualquer metro quadrado daquele espaço de lazer veraneio. A coisa começava a ficar um tanto quanto insuportável. Mas, enquanto o sol escaldava, lá estava eu, vangloriando-me de minha sombra.
Por volta de umas quatro da tarde, eu resolvia dar o meu último mergulho, antes de ir embora. Mas onde? Não havia brecha naquelas águas azuis. Mas eu já levantara de minha mesa decidido a dar um mergulho. Então, o faria nem que fosse para afogar alguém que ousasse não me dar um espaço.
“Tibum”. Eu caía à água. Desviando-me do povo, tentava chegar até a outra borda do “L”. Pelo fundo, eu avistava a parede tomada por pessoas, mas achava um canto e me erguia. Ao tirar o rosto de dentro da piscina, notava que todos ali naquela borda olhavam fixamente para um mesmo ponto. Eram todos homens. Jovens e alguns nem tão jovens assim. Olhavam sem dar um pio. Olhavam os olhos mais azuis que eu já vira em minha vida.
Os olhos eram de uma menina que aparentava uns vinte e poucos anos. Ela bebia o seu refrigerante e parecia não se incomodar com tamanha devoção ali exposta. Eu olhava os rostos daqueles homens e ficava boquiaberto com o fascínio que aqueles olhos azuis causavam. Em mim também causou, lógico. A menina trajava um biquíni azul, da cor de seus olhos. Os óculos de sol ficavam sobre a testa. Os cabelos lisos e cortados à altura do pescoço balançavam-se harmonicamente. Às vezes, uns fios grudavam em seus lábios. E que lábios, meu Deus! Claro que sim, mas a impressão que nos dava era a de aquela boca nunca ter beijado ninguém.
Alguém resolvia falar. Era um rapaz bem jovem, mais ou menos com a idade da menina.
- Que olhos!
- Eu estou vendo – eu respondia.
- Como pode ser tão sonsa?
- Como assim?
- Veja! Ela sabe que estamos olhando para ela! E não olha para ninguém aqui!
- Lógico! Eu também não olharia! Somos um bando de homens feiosos à beira de uma piscina. Enrugando nossos membros só para assistir esse espetáculo azul.
- Você é poeta? – ele me perguntava.
- Quem me dera.
- Por que não tenta?
- Ser poeta?
- Não! Falar com ela!
- Jamais. Olha essa concorrência. Eu já estou de saída. Acho que vou deixar essa com vocês.
- Bem, acho que ninguém aqui terá coragem. Estamos aqui há quase meia hora.
- Tudo isso?
- É!
- Bem. Acho que vou tentar sim.
- Isso! Vai lá! – o rapaz me encorajava.
Eu levantava da piscina e resolvia falar com a menina.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
Ela me respondia empolgada, porém, não olhava nos meus olhos. Parecia-me um deboche. “Começara mal”, eu pensava.
- Tem alguém com você nessa mesa?
- Tem sim. O meu irmão, a esposa dele e os dois filhos.
- Ah... Sim... Acha que ele se incomodaria se eu a fizesse companhia?
- Claro que não! Pode ficar! Eu até acho bom! Estou sem dizer uma palavra faz umas duas horas.
Mas que debochada! Ela olhava para o céu enquanto falava comigo. Ria e sugava aquele refrigerante.
- Bem, eu só gostaria que você olhasse para mim enquanto falasse.
- Desculpe é que...
- Melhorou. Seu rosto está diante do meu, porém, os olhos não. E que olhos hein, menina?
- Obrigada, mas é que...
- Continua a não me fitar. Tem vergonha de seus olhos serem tão azuis e lindos, menina? A propósito, qual o seu nome?
- Bem, meu nome é Marcela. E o seu?
- João.
- Prazer, João.
- O prazer é meu, Marcela. Mas diga. Você ia me dizer algo. Mas, por
favor, olhe para mim!
- Pois é, João. O que estou tentando lhe dizer é que, embora meus olhos sejam azuis e lindos, como você mesmo disse, eu não enxergo.
- Ah? Queres me dizer que és totalmente cega?
- Isso. Agora entende?
- Claro, claro. Que indelicadeza a minha. Desculpe-me, por favor. Eu... Eu já vou indo. Eu...
- Vai por quê? Porque sou cega?
- Não, imagina. Vou porque, no momento, morro de vergonha de minhas palavras devastadoras.
- Mas não enxergo sua vergonha.
- Não precisa. Está mais presente entre nós que este sol que nos derrete.
- Você é poeta?
- Não, não.
- Você fala tão... Sei lá.
- Impressão sua. Eu falo normal.
- Eu sou cega, não sou surda, João.
- Claro, claro. Mas... Não sou poeta...
Conversamos ali por alguns minutos. Os assuntos foram bastante variados, porém, entre eles estavam sempre presentes a cor azul daqueles olhos e o vermelho da paixão que me consumia aos poucos.
- Aqui nesse clube, você foi o que mais tempo ficou aí sentado – dizia-me.
- Mas e seu irmão?
- Meu irmão? Desse sim, eu enxergo a vergonha.
- E ele tem vergonha do quê?
- Do que carregas ao seu lado por questões sanguíneas.
- Mas ele não tem medo de lhe deixar aqui sozinha?
- Não. Pelo visto, não.
- Então, acho que ele não se incomodaria de vê-la beijando alguém, não é mesmo?
- Acho que isso nem passa pela cabeça dele. Nunca ninguém chegou a esse ponto mesmo.
- Por quê?
- Só em perguntar o porquê, vejo que tu não sentes o abismo que há entre nós.
- Abismo? Mas que abismo? Tudo o que sei é que estou diante de uma menina linda e...
- Então?
- Quero lhe beijar. Disso eu também sei.
Beijamos-nos. E beijamos-nos mais e mais.
Aquele dia foi inesquecível. Ao fim daquela tarde, acabei conhecendo o irmão de Marcela e sua família. Ele me pareceu bastante surpreso ao nos ver aos beijos. Mas notei nele um sorriso no canto da boca. Um sorriso que parecia quebrar uma ideia de que Marcela seria incapaz de conquistar alguém, por conta de sua deficiência.
Cheguei a namorar Marcela por alguns meses, mas os seus pais mudaram-se para outro estado. Na memória, guardo não só aqueles olhos, mas o sorriso. Embora Marcela não tivesse noção de imagem alguma, parecia viver muito bem com a sua imaginação. Na cabeça de Marcela, esse mundo devia ser muito mais bonito, muito mais azul do que é. Bastava vê-la sorrindo. Ela sorria para a vida. Para a vida.