O cliente tem sempre razão

- Essa porcaria desse mercado cobra a mais do que os outros. É um verdadeiro roubo! É um absurdo! Deus, sou assaltada todo maldito mês quando venho fazer compras!

Rogério pescava as mercadorias da esteira e passava no consultor de preços. A cliente como de praxe era mulher e como de praxe era velha. Requisitos mínimos para uma dor de cabeça incondicional. Todas as camadas da pirâmide social passavam por ali e todas as espécies de feitios também. Dos mansos aos irados, dos ateus aos fanáticos. Mas nenhuma raça é pior que clientes velhas e mal amadas. Aquelas mulheres despencando dos cinquenta aos sessenta, com as gorduras transbordando sobre a bainha de uma calça de Lycra e o rosto coberto por um mosaico de rugas recem-descobertas. Junte uma viuvês recente a uma aposentadoria injusta e você terá uma criatura infausta assombrando filas de bancos, comerciantes e motorista de ônibus.

- Nota fiscal paulista, senhora? – Rogério pergunta sem olhá-la. Olhá-la destruiria a barreira de calma edificada a sua volta.

- A merda com essa nota fiscal paulista! – A senhora brada. – Só mais uma promessa desses filhos da puta que estão no planalto.

- A senhora deveria ser mais educada. – Um rapaz logo atrás na fila disse em tom proibitivo.

- A merda você também! – A senhora grita em resposta. – Não diga o que tenho que fazer!

- São Cinquenta e cinco reais e vinte centavos, senhora. - Após passar todos os produtos, Rogério diz, preparando-se para a avalanche de despautérios.

- Que absurdo, Meu Deus! – A senhora grita erguendo os braços, como uma mártir. – Isso é um assalto! Olhe de novo esse negócio, você se enganou na sua conta, moleque!

- Foi o computador que calculou, eu só passei os produtos na esteira. – Rogério explicou, como quem tenta convencer uma criança mimada de algo avançado demais para sua idade.

- Então faça de novo!

- Senhora, tem gente com pressa aqui! Pare de encher o saco do garoto! – O mesmo homem da fila bradou, visivelmente irritado. Carregava dois engradados de Heinekens e parecia um personagem surgido de algum romance de Bukowski.

- Dane-se! Não vou pagar esse absurdo!

- Perdão, senhora, mas o preço é realmente esse. Se não tiver condições de pagar, peço a gentileza de dar a vez aos outros clientes. – Rogério disse calmamente, fitando as próprias mãos negras.

- Você está me desrespeitando, moleque? – A senhora diz em tom ameaçador. – Respeite a minha idade!

E ali estava o famigerado pretexto. A idade avançada dá a desagradável ilusão ao cidadão que ele tem direito a tudo. “Escute meus disparates, recebe meu vomito de fracassos, mas não diga uma palavra contra, pois SOU VELHO.”, “Eu tenho direito de humilhar você, pois SOU VELHO.”, “Tenho direito de entrar numa fila não-preferencial, atravancar o progresso e importunar um trabalhador estressado, pois SOU VELHO!”.

- Chame seu gerente, quero fazer uma reclamação de você. É muito mal-educado. – A senhora exige, em tom autoritário. Os clientes da fila começam a xingá-la e resmungar pelo atraso. – Se tiver sorte não perde seu emprego, pois o dono dessa merda é meu amigo.

Rogério calmamente levanta-se, atravessa alguns corredores e encontra seu superior. Explica o fato apaticamente e volta para seu balcão.

- Ele está vindo, senhora. – Olha para o próximo cliente. – Próximo!

- Como assim próximo?! – A senhora branda indignada. – Ninguém passa até eu efetuar minha reclamação. Eu tenho direitos!

- Escuta aqui sua velha desgraçada, se você não tirar essa bunda flácida daqui e deixar esse garoto em paz, eu juro que amasso essa sua cara enrugada! – O personagem de Bukowski vociferou e todos levaram a sério.

A senhora pareceu titubear em sua determinação, mas logo desenhou no rosto um semblante de desdém, digna de uma aristocrata antiquada passando numa calçada repleta de mendigos.

- Se encostar uma mãe em mim eu chamo a polícia, seu homem degradante!

- No que posso ajudar, senhora? – O gerente do mercado chegou um tanto afoito.

E eles foram para um canto mais reservado. Rogério notou que ela apontava o tempo todo para ele dramaticamente enquanto falava, mas não deu importância. Apenas passou as coisas do próximo cliente, sem fitá-lo.

- Não vai acontecer nada contigo, garoto. – O personagem de Bukowski disse amistosamente. – Se acontecer eu juro que esmago a cabeça dessa filha da égua!

Rogério limitou-se a sorrir, mas era somente um esticar de peles e músculos, não havia emoção no ato. Os próximos clientes foram passando, sempre com palavras de consolo e muito amigáveis, como se as atitudes da senhora tivessem ativado temporariamente um senso de compreensão e tolerância neles.

Após alguns minutos, o gerente despediu-se da senhora e aproximou-se de Rogério.

- Vamos até o estoque ter uma conversa.

- Sim. – Rogério respondeu, sem demonstrar nenhum receio.

Levantou-se e antes de sair fitou a senhora que estava parada no fim do caixa. Ela tinha um olhar de triunfo e maldade. Rogério sorriu tristemente, como se ela fosse uma amiga de longa data que lhe pregara uma peça, mas que a perdoara, afinal.

Nos fundos do mercado o gerente disse sem muita gentileza na dicção.

- Aquela senhora diz que você a tratou mal, desrespeitou-a na frente de todos. Ela se sente prejudicada. Ela é uma cliente antiga, Rogério. Nós não perdemos clientes antigos por causa de gente estressadinha como você. Serei obrigado a dar uma canetada em você. O que tem a dizer sobre isso?

Rogério suspirou, não com pesar ou cansaço, mas com um conformismo tão cabal que até mesmo o gerente sentiu o peso de sua apatia.

- Vai adiantar eu dizer que ela está mentindo e que tenho dezenas de testemunhas que comprovam uma versão totalmente diferente da dela? – Ele disse calmamente. – Acredito que não. Faça o seu trabalho como foi instruído, senhor Fernando. Faça a advertência e eu assinarei sem titubear. Afinal, o cliente tem sempre razão.

O gerente dispensou-o. Rogério voltou para o seu caixa, sabendo antecipadamente que a senhora da idade, como em todas as semanas, voltaria no dia seguinte para perguntar-lhe se ele havia recebido uma bronca pela reclamação e, dependendo da resposta, faria outra por um motivo inventado na hora.

- O cliente tem sempre razão... – Rogério sussurrou no caminho de volta, sorrindo desanimado.

Leo Ramos
Enviado por Leo Ramos em 03/07/2009
Código do texto: T1680360
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