A INEXISTÊNCIA SOB A FIGUEIRA
Era com curiosidade e no mesmo instante certa relutância que nas viagens a trabalho passava por aquela praça e o via.
Por vezes, no instante em que seus olhos fixavam-se nele, acreditava que o outro retribuia. Sobressaltava-se com a idéia de ser pego no ato; o encontro dos olhos, não atrito, faria surgir vergonha.
Aberto o sinal, outros ocupavam sua visão.
Seria mais um, descartável e efêmero como um piscar de olhos e cores passadas, deixadas para trás como o vento do outro lado da janela. Mas algo perturba.
A repetição.
Semana após semana e mesmo sem olhares se tocando, eram irmãos. Inegável sua presença e expectativa.
Acometia-lhe a piedade.
A falta de vontade de apiedar-se.
Tomando como vítima, o tinha em seu colo.
O inverno daquele ano principiava-se chuvoso.
Viagem de muitas horas. O ônibus acalentava os passageiros com seu balançar pelas irregularidades do asfalto. A modorra removendo-o às reminiscências. De súbito, o mesmo lugar, o congestionamento, farol fechado.
Sentara-se na mesma poltrona não em razão de suas crendices, mas ligava-se ao meio, as coisas repetiam-se durante os dias e vendo sutilmente se alterando, participava; por isso mesma poltrona, mesmo lugar, mesma cidade visitada e mesmo trabalho há mais de quinze anos.
Estaria ali como presente em comemoração a seu aniversário?
Os olhos estáticos, a pessoa sombra, pessoa estátua, inexistente e morta; como queria que num rompante de fúria aquele homem dissesse chega!, rastejasse como verme, com força repentina passasse uma rasteira em quem na sua vida não notasse.
As gotas de chuva caiam mais pesadas agora.
Debaixo da figueira da praça destruída como se fosse contexto para àquele que a habitava ele não estava. Cronometrado, no tempo restante até que o sinal ficasse verde, vasculhou todos os cantos vazios. Não encontrou.
Fantasiou as hipóteses da morte do homem. Todas as possibilidades enumerou mentalmente:
1) tuberculose, pelas noites dormidas ao relento;
2) dívida das drogas que visivelmente consumia;
3) tristeza em razão da solidão e inexistência;
4) felicidade por causa do encontro com os familiares que antes tinham esquecido;
5) suicídio dos olhos piedosos.
Seu reflexo no vidro chorava através das gotas escorrendo daquilo que derramava.
Quaisquer que fossem os motivos da morte, não amenizavam a falta de despedida.
A sensação de abandono.
Dramatizando - como era também propenso a dramas -, soluçou a piedade fortificada, intensificada pela chuva, seguiu seu caminho.
Viu terminado.
O instante, os olhos não cruzados, o pedido de revolta e o feliz aniversário finalizavam-se com preces pela alma esquecida. Tanto pesar ele sentia.
A realidade, por ser tão crua, dissipava-se com o devaneio triste; as pessoas ao redor, o velho sentado ao lado não consolou, nada existia.
No instante em que a tempestade ganhou esse nome, um caminhão veio ao seu encontro.
Como espelho refletindo,o drogado sob a figueira, não sentiu falta de nada. O acidente a poucos metros era de nenhuma importância, o único morto no acidente, que por um azar estava onde o caminhão acertou, era ninguém.
Desejou que o dia terminasse, que o chão não estivesse tão molhado, que os pombos não insistissem em sujá-lo, mas como desejos às vezes são frustrantes, acomodou-se como estava.