Soldado Temilton, o arboriglota - Histórias do quartel
Eu era do 3º pelotão, de um total de 4, cada um com 50 soldados e a comando de um tenente e dois sargentos auxiliares. O tenente do meu pelotão era o Barbosa. Tenente Barbosa contava com o auxílio do Sargento Alexandre e do Sargento Santiago. Como todo pelotão tem um soldado que se destaca por seus anormais modos e costumes, o meu não podia ficar fora de tal regra. Já lhes apresentei ao Soldado de Moura, não já? Pois bem. Meu grupamento fora premiado: além dessa raridade de militar, fomos contemplados com a existência do soldado 258. O fabuloso, o extraordinário, o excepcional Temilton!
***
Soldado Temilton, logo à primeira vista, destacou-se: na segunda semana de aquartelamento, quando ainda éramos recrutas, assistíamos a aulas que tratavam de assuntos militares. Aprendíamos hinos, tínhamos instrução armada, noções de primeiros-socorros etc. Um dia, durante uma instrução de Ordem Unida (onde aprendíamos e aperfeiçoávamos técnicas de apresentação militar e de comandos como "Marchar", por exemplo), o Sargento Santiago nos ensinava a forma correta de apresentação. Ao ouvir seu nome ser chamado pelo sargento, o recruta deveria levantar-se na posição de Sentido, prestar continência, e falar seu número, nome de guerra e pelotão, nesta ordem.
- Soldado 214, Tomé Félix, 3º pelotão!, respondeu, corretamente, o Tomé.
- Muito bom, soldado. Padrão, disse o Sgt. Santiago.
- Soldado 243, Ramon, 3º pelotão!
- Bom, Ramon. Muito bom, elogiou o comandante.
Eis que o sargento aponta para Temilton.
- Soldado Temilton, 258!, brada o soldado.
- O Sr. é surdo, Sr. Temilton? Hein?! É surdo?! Você não 'tá' ouvindo seus companheiros, não, é? De novo!, irritou-se o Sargento Santiago, e fez menção pra que Temilton se sentasse e se apresentasse novamente.
Sentado, Temilton lembrou como seus companheiros tinham se apresentado outrora. Desesperado, levantou-se.
- Temilton, soldado do 3º pelotão, 243!
- O Sr. 'tá' de sacanagem, seu bisonho? Seu nome agora é Ramon?, vociferou o Sargento.
- N-não, senhor..., gaguejou Temilton.
- Então, por que o Sr. tá se apresentando com o número dele?
- Não sei..., disse, sinceramente, o cabisbaixo soldado.
- Anda, seu monstro! De novo!
E Temilton voltou a sentar-se, aguardando, trêmulo, pelo novo momento. Passados alguns segundos de profunda respiração do Sargento, sua voz de comando fez-se grave aos ouvidos de Temilton, fazendo-o saltar do chão, qual grilo.
- Hum...É...Soldado! Dito isto, Temilton sentou-se e pôs o rosto entre as pernas, que, dobradas junto ao peito, eram envoltas pelos magros braços.
Foi uma explosão de risos na sala de instrução.
- Temilton, 'vem' cá!, disse o Sargento Santiago, querendo controlar a raiva, mas visivelmente falhando na tentativa.
Com os olhos marejados pela vergonha, o recruta obedeceu de pronto. O sargento, então, deixou o militar em evidência, de pé à frente de todo o terceiro pelotão, onde ele encarava a tropa como se fosse um capitão desarmado prestes a enfrentar um exército de lendários espartanos.
- Paes Leme, me diz: o quê que eu faço com essa raro?
- O senhor é quem decide, respondi.
- Alguém aqui é contra Deus?, indagou,, em voz alta o sargento. Não houve resposta.
- Porque eu acho que Ele não teve amor quando botou esse bisonho na Terra, não. Temilton, o Sr. sabe o que o Sr. vai fazer agora? 'Tá' vendo aquela árvore lá no pátio, perto do infinito? Então. O Sr. vai lá se apresentar 'pra' ela até ela falar que 'tá' bom. Entendido, seu mocorongo?
- Sim, Sargento!, disse Temilton, aliviado por não ter de mergulhar na Baía de Guanabara fardado e bradando "Temilton não é nome de gente!", como já havia feito outras inúmeras vezes.
***
- Soldado 233, Sant'anna, 3º pelotão!
- 'Tá' bom, Sr. Sant'anna, mas pode melhorar. Quero ver vibrando!
A instrução prosseguiu tranqüila por mais cerca de uma hora, a ponto de ninguém mais se dar conta da ausência do Temilton. Agora, entoávamos, em uníssono, a Canção da Infantaria:
- "És a nobre Infantaria
Das armas, a rainha!
Por ti, daria
A vida minha!
És a glória prometida
Nos campos de batalha!
Estar contigo!
Ante o inimigo!
Pelo fogo da metralha!
És a eterna majestade
Das linhas combatentes!
És a entidade
Dos mais valentes!
Quando o toque da vitória
Marcar nossa alegria,
Eu cantarei!
Eu gritarei!
És a nobre Infantaria!"
A porta se abriu no momento e que seguíamos para a segunda parte da canção.
- Permissão para entrar no recinto, Sargento?!
- Tem permissão, seu monstro. O quê o Senhor 'tá' fazendo aqui, Temilton?!
- Eu ouvi, respondeu o soldado.
- O quê, seu bisonho?
- A árvore respondeu.
Gargalhadas estrondosas deram lugar ao uníssono que outrora reinava na sala de instrução. Eu, por exemplo, me escorei na parede para não ir ao chão.
- Temilton, pelo amor de Deus, o que o Sr. disse?, respondeu, incrédulo, o Sargento Santiago.
- Ué, Sargento. O Sr. disse pra voltar só quando a árvore respondesse? Então.
- Calma aí: o Sr. 'tá' me dizendo, Sr. Temilton, que a árvore falou com o Sr.?!
- Sim, respondeu o soldado 258.
- Então, vamos lá embaixo agora que eu quero ouvir isso!
Descemos todos ao encalço do Sargento. Ao pé da tal árvore, nos posicionamos, ainda com deboche. Temilton pôs-se à frente e apresentou-se:
- Soldado 258, Temilton, 3º pelotão!
Perfeito. Mas o Sargento não deu-se por satisfeito:
- 'Tá', Soldado. Muito bom. Mas cadê a porra da voz da árvore?!
- Soldado 258, Temilton, 3º pelotão!, repetiu Temilton, exemplarmente.
- 'Tá', Temilton. 'Tá'! Eu quero ouvir a árvore!
Apenas eram escutadas as vozes do Temilton e do Sargento Santiago. Equanto aguardávamos uma resposta desconcertante do soldado, o riso era o palhaço preso na caixa de surpresa prestes a ser aberta.
- Soldado 258, Temilton, 3º pelotão!
- Fiu!, ouviu-se um assobio.
- Aí! Não falei?! Viu?! O Sr. viu?! A árvore respondeu!
- Ah, eu não acredito!, respondeu, irado -- e ainda incrédulo --, o Sargento Santiago.
- Nem eu, Sargento! Nem eu! A Natureza é mesmo maravilhosa! Cada um se comunica do seu jeito, 'né'?! Deus é grande..., vislumbrou Temilton.
- Ô, seu monstro! Isso é o passarinho ali no galho! Pelo amor de Deus! Temilton, na boa, 'vai' pra água, 'vai'. Não tem almoço 'pro' Sr. hoje, não. Não é possível. O Sr. não existe. Pelo amor de Deus..., disse o Sargento, com raiva e pêsame.
- Mas, é que... Eu vou ter de falar que Temilton não é nome de gente?!, perguntou o soldado.
- Não, seu raro! Quando o Sr. mergulhar, eu quero ouvir: "Eu sou o Temilton e falo com árvores!". Entendido?
- Sim, Sr...
***
Após risadas compartilhadas entre nós, soldados, e o Sargento Santiago -- no único momento em que ele permitiu essa relação --, o comandante disse em voz alta, arrancando boas gargalhadas do pelotão:
- Só falta ele voltar dizendo que flertou com a Pequena Sereia!