Memórias de quando fui neta. Ou Seu avô só tem uma?

Aos 7 anos, se me disessem que seu avô tinha uma só esposa eu ficaria surpresa. O que? só uma? Pois o meu avó tem duas! Também acharia estranho se ele não soubesse fazer tudo o que o meu sabia. Como? ele não sabe confeccionar celas e gibão de couro, construir casas, cercas e currais, plantar uma roça, escavar poços e cacimbas, fazer vaca parir, arrancar tatu do buraco, curar bicheiras, matar cobra venenosa, abater bois e carneiros e preparar a carne para consumo e venda, dentre outras coisas?

O meu avó materno era João, que como todos Joães virou Joca. Um senhor franzino e calvo, de jeito tranquilo, de fala mansa que nos encarava sempre de frente, cabeça erguida, olhos semicerrados como se estivesse escaneando nossa alma. Se precisasse era brabo que nem siri em lata.

Quando chegávamos de férias a sua casa era festa e liberdade total! A casa me parecia enorme, com suas paredes sem reboco cheias de frestas de onde eu retirava os "barbeiros" para brincar de fazenda. O piso vermelho de tijolos lisos e gastos, era frio e às vezes nos servia de cama depois do almoço. Éramos recebidos por suas duas esposas. Uma de direito, as duas de fato. Nenhuma era minha avó de sangue, já que sua primeira mulher havia morrido de parto quando nasceu minha mãe. As duas conviviam de forma harmoniosa, e a devisão de tarefas parecia ser de acordo com o nível cultural. Uma era instruída, falante, sabia ler, escrever e contar. Era vaidosa e gostava de viajar "ao Recife". Era minha madrinha e só eu tinha o privilégio de compratilhar os segredos e mistérios infindáveis de sua mala grande e bonita que me embriagava com o cheiro de pó de arroz, perfumes, esmaltes e sabonetes. Cada vez que era aberta, me fascinava a figura de uma miss Brasil de maiô , faixa, cetro e coroa , formando parelha com outra do Juscelino Kubtschek, coladas no interior da tampa.

Ela organizava a casa, dava ordens e preparava os doces e compotas que eram aramazenados em recipientes de barro e guardadas num jirau - espécie de trançado de madeira que pendia do teto preso com cordas nas extremidades.

A outra não sabia nada das letras e não primava pelo asseio pessoal e vaidades. Era calada e se limitava a preparar a comida do dia -a- dia , a pisar no pilão, moer milho, efetuar a limpeza da casa e das roupas e cuidar dos bichos pequenos no quintal.

Sinestésica ainda no útero, eu sempre associei a primeira à limpeza, a cheiro bom, ao mar do Recife que nunca vi, à liberdade, à vaidade e ao glamour. A segunda, sempre me lembrou uma enorme panela de feijoada fervendo no fogão de lenha, um pilão de arroz descascado, o acridoce da coalhada com cuscuz e rapadura e o odor de penas de galinha molhada.

Nas minhas incursões pelos limites da propriedade eu explorava tudo, desde a casinha parede-meia - onde havia ferramentas, rações para o gado, arreios, cuias, montes de batatas e silos de zinco cheios de grãos- vedados com uma mistura de cera de abelhas e pó de tijolos - as cacimbas, os currais e os bichos copulando, dando cria e leite; o riacho, pelo qual eu tinha certeza que chegaria ao mar. Um mar que de fato nunca explorei. Não por medo da viagem ou dúvida quanto à sua existência. O que de fato me importava era peservar o mistério. O mar devia ser bonito demais e melhor do que vê-lo era imaginá-lo na sua imensidão. O riacho era a via de acesso para a realização do sonho quando me apetecesse.

Aos 13 anos, já há algum tempo na cidade, tudo me parecia diferente. Os interesses eram outros e já não via tanta graça no sitio do meu avó. Aos poucos as coisas iam se esvaindo, mudando de cor e dimensão. A casinha do meu avó era minúscula e uma parte da cozinha havia caído e fora isolada. O verde não era mais o verde que eu vira a água se acabava. Aos poucos o riacho minguava, os bichos sumiam, os silos pela metade, o cachorro sarnento e magro caducava num canto da casa. As pessoas, enfadonhas e taciturnas pareciam tristes e cansadas da vida.

Um dia meu avô se foi e vi minha mãe com a sua dor calada, vestir preto fechado por um ano. Eu e minha irmã, usamos por seis meses -lavando e vestindo- duas mudas de roupa composta por uma saia preta e uma blusa também preta de bolinhas brancas - que usei para encontrar meu primeiro namorado, na sala do cine São Francisco. Os meninos maiores, assim como o meu pai, usavam um "fumo" no bolso da camisa.

Depois disso, voltei poucas vezes ao sítio. As duas viúvas - eu já sabia-, não conviviam tão bem assim e cada uma buscou seu rumo. A casa e tudo ao redor virou cinza, desolação e abandono. Só mais uma paisagem seca no sertão da Paraíba.

Apesar do gradativo distanciamento entre nós, senti muitas saudades do meu avó e por algum tempo o meu espírito infantil lembrava dele com um misto de tristeza, melancolia e rancor: Como ele podia ser tão ingrato, ter morrido assim sem mais nem menos e sem se despedir de mim?

Dele, não herdei a inclinação para a bigamia, (que não ouso fazer juízo de valor) mas o senso apurado de organização, o gosto pelas coisas simples, a teimosia e a resistência às adversidades e a capacidade de ser o que ele próprio se entitulava " pau pra toda obra", além do hábito de apreciar o sabor de uma pimenta braba que vez por outra me assanha a gastrite crônica e causa a insônia que me faz escrever umas insanidades.