Confissões

E então, aquele senhor perguntou ao casal:

_ Existe ciúmes na relação de vocês?

Depois de lançar um indecifrável olhar para o companheiro ela respondeu:

_ O fato de eu estar com ele, depois de todos esses anos, não se deve apenas ao amor que eu sinto. Baseia-se também no amor que, acredito, ele sente por mim. De tal maneira, acredito que eu amo o amor que ele me dedica, além de amar a pessoa. É aceitável que, ao ver uma linda mulher passando pelas calçadas ele a admire, talvez mesmo a deseje. Mas amar é poder abdicar dos rompantes instintivos, dos arroubos da natureza, por saber que está a sua espera alguém que merece mais do que isso... Merece a sua atenção, a sua lealdade. Assim, creio que o ciúme seja não mais do que uma letal porção de veneno. Não daquele que para de uma vez o seu coração, mas daquele que o contamina e não consegue dividir espaço com qualquer outro sentimento. Não posso permitir que um sentimento tão vil, tão sombrio, venha fazer morada numa casa cheia de luz que é o coração que ama. Me alimento, todos os dias, dos olhares que, se já não são apaixonados, ainda denotam respeito e consideração pelo tempo, pelos sonhos e desilusões que vivemos juntos, por todos esses anos. A liberdade entre nós não se traduz na não proibição de o outro frequentar determinados lugares, não se traduz na intriga por esta ou aquela companhia ou amizade, não é refletida nem ao menos na falta de cobrança relacionada a datas, horários... É uma liberdade que se sente todos os dias quando o companheiro sai pela porta de casa, e sabe que, se não houver mais interesses em comum, ele pode, simplesmente, não voltar. Parece demasiado permissivo, mas não passa da mais nua realidade. Tudo o mais é mágoa gratuita: discutir os momentos ao outro dedicados, dizer que depois de tantos anos juntos não era o que se esperava... Afinal, se um dia tudo acaba, é porque teve começo, teve meio e o imprescindível fim. No desenvolvimento houve vida, e vida a dois. Houve sonhos, e sonhos sonhados em conjunto, perseguidos por ambos. Definitivamente não. Não cabe ciúmes numa relação baseada no amor. Não cabe posse, não cabe possessão.

O senhor então virou-se para ele e, com um ar de quem não sabia o que esperar como resposta depois de tão inflamado e espontâneo discurso, perguntou:

_ E você, o que pensa? Sente ciúmes de sua esposa?

_ O ser humano – ele respondeu, é o único dotado de capacidade de raciocinar. Por este motivo é o que melhor se adapta à situação que se apresenta, é o único que pode avaliar, escolher, ponderar. Crescemos e envelhecemos, mas é um processo que ocorre antes com o corpo do que com a mente. Somos pessoas em descompasso naquilo que nos constitui: a mente está sempre em desalinho com o corpo. Sei que um dia posso encontrar por estas ruas uma mulher que me conquiste com um só olhar. Sei que minha companheira pode encontrar pelas ruas pessoa que a faça tremer, desconsertar, comparar. Mas, escolhas não são limitadas, para mim ou para ela. Sei que por todo sentimento que ela até hoje me devotou, ela pensaria algumas vezes antes de entregar-se a outra pessoa. Mas o simples fato de admitir que ela pode pensar em tal possibilidade, me faz sentir os mesmos tremores da paixão repentina, mas sem despertar o mesmo prazer. Desperta-me medo, aflição. O que antes fora definido como posse, agora eu chamo pelo nome de necessidade. É o medo do sentimento de perda, e a angústia de que, um dia, pode ser necessário começar tudo de novo, com desconhecida pessoa, imaginando que ela, aquela que era minha companheira, ponderou e decidiu que eu não lhe valia mais. Por fim, creio que um dos maiores males que pode ter assolado a humanidade se travestiu na figura da liberdade. Ser livre é poder escolher em definitivo, não admitindo, inclusive, escolha que à sua contrarie. Definitivamente sim. Sinto ciúmes daquilo que é meu.

Os olhares de ambos se cruzaram e um silêncio estrondoso instalou-se naquele ambiente. Dali saíram juntos, porém divididos. Cada um carregava consigo a sua verdade, a sua convicção, e a incerteza