A minha amiga Clara

Conheci a Clara numa das minha viagens ao paraiso,ao inferno.Nunca compreendi bem qual deles, talvez por nao ter sido nenhum para mim.

A Clara em tempos tinha tudo, mas quando se tem tudo e nao se sentiu quase nada procurasse sempre mais qualquer coisa.

Quando a conheci nao passava da sombra do que tinha sido,estava a decompor-se como um cadaver vivo.

Foi ela que escolheu viver assim, a vida deu-lhe todas as coisas a que chamamos oportunidades.

Sera que deixou de ser uma pessoa por te escolhido uma vida que a maioria nao entende?

Lisboa 1995

Esta foi provavelmente uma das ultimas vezes que nos encontramos eu sempre aqui enfiada nesta casa com um cheiro a mofo insuportavel e as paredes todas sujas, ja nao veem tinta a anos, para ser mais exacta so foram pintadas quando foram construidas e este gato que como eu esta mais morto que vivo.

Hoje ainda nao apareceu ninguem, ainda e muito cedo.Ainda nao devem ter conseguido o primeiro conto.

Antes tambem me fazia a vida, agora a vida e que me faz a mim.

Sei que o meu percurso esta a chegar ao fim e tenho medo,embora seja o que inconscientemente espero a algum tempo.

Estou cansada,muito cansada.

A ultima vez que sai de casa foi contigo quando me obrigaste a ir la abaixo, foi o maior sacrificio que fiz em anos.

Senti-me tao completamente disfuncional no meio daquelas pessoas todas, a rua parecia que me ia engolir e tantos carros.

Quase tropecei no salto da bota estilo 1977 quando ainda era uma pessoa, ou pelo menos penssava ser.

Nao sei se o paraiso existe ou se simplesmente somos enterrados, os vermes comem a nossa carne e deixamos de existir.

Prefiro no entanto acreditar que o corpo morre e a alma vai para um sitio melhor,uma alma sem corpo porque o corpo e algo tao pouco perfeito.

Nao posso reclamar do meu corpo que em tempos foi um bom corpo,mas agora...agora ja nao e o que era.

Antes de andar metida nesta merda pensava que era melhor que todos, que nada me podia tocar,nada podia ou tinha o direito de incomodar algo assim tao perfeito,sem defeitos.Estava enganada!

A forma como olham agora para mim e igual a que antes olhava para o mundo e via as pessoas,com arrogancia! Esse sentimento de repulsa e o que vejo na cara das pessoas que passam ao meu lado e por acaso olham para mim,coitadas nao sabem que de um momento para o outro tudo o que acreditam pode deixar de existir e depois la se ira esse tao estupido olhar de superioridade.

Gargalhadas e vomitos e o que me passa na cabeca,mas prefiro nao pensar mais no assunto.

Tenho de me concentrar em andar e esperar que este sacrificio que fiz para te por contente acabe.Tenho de me concentrar um passo atraz do outro.

A muito tempo que nao tentava fzer ninguem contente, sentir e algo que nao esta na minha lista de prioridades, nem isso nem outra coisa qualquer.

Nao tem lista de prioridades a minha vida so tem o proximo caldo e infelizmente nao e de galinha.

As vezes fico a pensar porque sera que me meti nisto,mas queria viver queria experimentar a ser nao sendo e o que aprendi foi a estar aqui neste nojo de casa sem agua quente, sem sonhos e sem precisar de quase nada

E agora que foste embora para outro mundo que ja nao e o meu fiquei aqui quase so a nao ser pelos tipos que assim como eu estao mais mortos que vivos.

Ontem apareceu a Rosa, nao sei se te lembras da Rosa, mas faziamos a vida juntas quando ainda nos aguentavamos de pe.

Nao a via a montes de tempo esta a morar com um tipo que em tempos andou comigo, esta muito magra,cheia de rugas e os dentes todos estragados,nao sei quem tem pior aspecto se eu ou ela, do tipo nem vale a pena falar.

Quem morreu foi a Verinha encontrarm morta numa casa de banho qualquer, parece que ninguem foi ao funeral.

Quando eu morrer tambem nao quero ninguem no meu enterro, nao quero lagrimas para mim de qualquer forma mesmo que quisesse provavelmente nao ia ter.

O meu filho ja nem vem aqui,antes ainda aparecia uma vez ou duas por semana, batia o coro de que nao podia continuar assim, que gostava de mim e nao queria que eu moresse.

Todos temos que morrer um dia era o que lhe dizia mas ficava com pena e acabava por dizer que para a semana ia ao centro fazer o programa da metadona e quando estivesse curada ia procurar trabalho e ia ficar tudo bem.

As visitas comecaram a ser mais distanciadas ate que deixou de aparecer.

Tirei o curso de sociologia na universidade moderna mas dinheiro nao havia assim muito e nos ultimos anos tive que me fazer a vida

consegui formar-me, mas isso foi algo que nao dei importancia ou me serviu para alguma coisa.

O curso da minha vida mudou no dia em que o sr. joao da padaria me ofereceu cafe e disse que me queria comer e se eu quisesse me dava tudo e mais alguma coisa mas claro com uma certa descrisao por causa da mulher e dos filhos e alem disso podia prejudicar o negocio.

Fiquei ali sentada a olhar para o queixo duplo a barriga enorme e a pensar que aquele filme nao me estava a acontecer.

-Entao rapariga o gato comeu-e a lingua?

-Sr. Joao nao sei o que lhe diga...

-Nao digas nada, levo-te a almocar e depois dizes qualquer coisa.

Levantou-se e foi ajudar a empregada a atender a fila de clientes que era cada vez maior.

Acabei o cafe e fumei o cigarro, nesse dia almocei na cantina

As brigas com a minha mae eram uma constante queria que fosse para o alentejo servir numa quinta qualquer duns doutores.Devia ser louca a mulher!

No outro dia resolvi tomar cafe e chegara um acordo com o sr joao la da padaria

Dois meses depois ja tinha a minha casa la no bairro e muitas criticas digo criticas, mas eram mais desaforos!

Ate que conseguia estar contente com o sr.joao la da padaria, nao tenho assim grande coisa para reclamar a nao ser o facto de pensar que era meu dono, mas nao era.

As ganzas chegaram e a partir dai foi sempre a abrir

De certa forma hoje entendo que ate tinha razao a minha mae esta vontade de conhecer o desconhecido, de experimentar e entender sem julgar,mas so nao se julga o que se conhece e que foi a minha desgraca, nao e que ache que seja uma desgraca, entalei-me isso sim.

Foi por isso que gostei de ti, reconheci em ti essa mesma vontade de conhecer o desconhecido para nao julgar,mas o que mais me impressionou e que nao ficaste entalada assim como eu....