FRAGMENTOS DE VIDA

Naquela fria manhã ele acordou preocupado. Acordou, como se não tivesse dormido. O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi sobre como é possível abrir os olhos e se deparar com a angústia que vem de dentro. “O sono não deveria ser reparador?” Pois bem: não foi. Aquela noite mal dormida serviu apenas para alertá-lo de que agora lhe restava menos tempo! Menos tempo do que tinha quando decidiu, na noite anterior, recolher-se ao seu quarto, acreditando que depois de uma bela noite tudo pareceria melhor. Os fantasmas que nos atormentam à noite não ousam encarar a luz do sol. Os medos não se deixam aquecer pelo calor que renova. “Bom dia? Bom dia pra quem?” Saiu da cama, lavou o rosto, reparou que havia ali muito mais rugas que antes, um aspecto pesado, carregado. O jornal, o café forte. As ordens do dia foram deixadas sobre a mesa. Seriam seguidas pela empregada tão logo ela chegasse. A caminhonete preta, último modelo, estava imponente na garagem, esperando pelas mãos que o guiariam. “Ah, o trânsito!” Tormento diário que lhe sugava, a cada dia, o pouco de esperança que lhe restava de que as coisas poderiam melhorar. Havia anos que ouvia promessas de melhoras. Havia anos que nem se iludia mais com a possibilidade de serem cumpridas. Saíra de casa há mais de 20 minutos em direção ao trabalho e estava ainda parado há cerca de três quarteirões de sua casa. Ali, lembrava das últimas férias em viagem pela Europa, quando Ana o acompanhava. Estava pensativa, desde então. “Será que ela já sabia o que a esperava”? Talvez, mesmo que conscientemente não houvesse manifestação, seu inconsciente já lhe advertisse da possibilidade de serem aquelas as últimas férias em companhia da pessoa que mais amava no mundo. Rápida passada no escritório, ele precisava chegar o quanto antes ao hospital de onde, aliás, já se condenava por ter saído, seguindo as recomendações dos médicos de que precisava descansar. Parado no trânsito, em meio ao engarrafamento sagrado de todas as manhãs, a saudade se fazia já presente.

Tereza abria os olhos, aspirava o ar pesado do barracão onde morava com seus três filhos. Era um cômodo apenas. Sala, quarto, banheiro, estava tudo no mesmo lugar. O ar denso de todas as manhãs era quase palpável. Era muito cedo ainda mas ela precisava se apressar. Atravessar a cidade, chegar ao serviço. Doce beijo no rosto das crianças que ainda dormiam compartilhando o cobertor fino. Tereza acreditava que Deus a havia presenteado com tudo quanto precisava para ser feliz, mas bem que Ele poderia dar uma forcinha há mais! “Ops!”, repreendia o pensamento lamurioso. “Agradecendo; é assim que eu vou conseguir seguir os meus dias”! Ver os filhos crescendo, na dificuldade, em meio aos tiros e balas perdidas que, por vezes, encontravam um peito desavisado, castigado pela fome. “Qual nada! Os irmãos da África passavam por maiores privações” – pensava Tereza, que nunca saíra sequer da cidade do Rio de Janeiro mas usava as informações de um lugar que ouviu falar que existia para trazer consolo e renovo. A vizinha estaria no barraco de Tereza por volta de 8 da manhã, quando acordaria os meninos, ou faria para eles uma caneca de “fubá suado” e ficaria responsável por eles até que os entregasse na creche da comunidade. “Quanta gente boa nesse mundo meu Deus!” Tereza não deixava de agradecer, de encantar-se com a boa vontade daquela jovem que nada ganhava em ajudar e que conduzia as crianças pra creche pra depois seguir para seu trabalho. É por isso que o mundo está cada vez melhor, as pessoas estão descobrindo, dentro delas, que “gentileza gera gentileza” como dizia o velho barbudo que chamavam de profeta.

Na faixa de pedestres Tereza observava a impaciência de muitos motoristas que insistiam em avançar sobre as linhas amarelas que representavam a segurança para aqueles que estavam a pé. Ali havia um senhor, numa imponente caminhonete preta, que acabava de retirar os óculos escuros e por isso mostrava os olhos pequenos de quem mal dormira durante a noite. “Esse povo rico, de festa em festa, nem dorme direito!”, pensou Tereza. Quisera ela ter aquele carrão, ter o dinheiro que sabia que aquele senhor tinha! “Ai...quisera eu, mas meu Pai ainda há de me prover!” Muitas vezes Tereza ouviu dizer que dinheiro não compra tudo, que não trás felicidade. Mas ela não se importaria em colocar à prova essa afirmação.

O sinal abriu e com ele a possibilidade de avançar mais alguns metros em direção ao seu objetivo. Era o que Jonas faria, se os pedestres não insistissem em invadir as faixas amarelas, já com o sinal verde liberando o tráfego dos veículos. Jonas recolocou os óculos escuros, pois seus olhos estavam como que repletos de areia. “Que noite!” Uma senhora estava pensativa, atravessando lentamente a faixa de pedestres e olhando pra Jonas como se dele estivesse extraindo os pensamentos. “Gente pobre não tem noção do quanto vale o tempo que se perde”, concluiu Jonas. “Deus abençoe o dia desse senhor”, pensou Tereza ao constatar que o motorista da reluzente caminhonete preta estava um pouco impaciente e parecia ter esquecido a mão na buzina.

Depois de uma rápida passada pelo escritório, Jonas já aguardava numa das salas do hospital; esperava ansioso que o médico lhe trouxesse notícias sobre ela, sobre como havia passado a noite. Quando lhe foi permitida a entrada na unidade de tratamento intensivo, Jonas encontrou a senhora já desprovida de toda a elegância que lhe acompanhara durante a vida. O olhar altivo, a pelo bem cuidada, a postura esguia, o andar decidido. Tudo se quedou naquela cama tudo ganhou novos sons e tons e vinham das máquinas que apitavam, piscavam e lembravam que o fim talvez estivesse próximo.

A vizinha de Tereza já havia deixado os meninos na creche, como fazia todas as manhãs. Não custava ajudar. Seguiu para a casa onde, naquele dia, faria a faxina. O porteiro do condomínio lhe abriu a porta da casa. Sobre a mesa da cozinha encontrou as instruções do que deveria fazer. Nada de instruções detalhadas. Ali vivia um homem sozinho, que apenas determinava que fosse providenciada a limpeza, organização de todos os cômodos, das áreas de lazer, e que não se preocupasse em esperá-lo porque não tinha hora para voltar pra casa. Que deixasse as chaves com o porteiro do condomínio e que o pagamento já havia sido providenciado junto à agência, como de costume. “Hum... homem jovem, solteiro, rico, com certeza não volta pra casa antes de o dia amanhecer!”

Jonas segurava as mãos da sua mãe quando os aparelhos entraram em desvario absoluto. As muitas enfermeiras que vieram em socorro afastaram-no, pediram que se retirasse. O médico puxou as cortinas, separou definitivamente a vida de Jonas da única vida que dava sentido à sua. Saindo da unidade de tratamento intensivo, Jonas sentou-se e esperou que o médico lhe confirmasse a pior notícia que poderia receber. Nem os tratamentos na Europa, nos Estados Unidos, nada daquilo poderia evitar o porvir. “Dinheiro não compra tudo, enfim!”

Alessandra Pinheiro
Enviado por Alessandra Pinheiro em 24/06/2009
Reeditado em 04/10/2010
Código do texto: T1665016