Insóbria Leitura

Família é a riqueza maior. Não se discute. Nasce dá um pouquinho de trabalho, aliás, pouquinho não, muito. Só quem tem sabe. Mas é bom apesar de tudo. O dia em que você vai à maternidade buscá-los: - a mãe e um... Quando se tem sorte busca-se a mãe e mais alguns.

Arthur era um desses com sorte. Vestia-se para buscar a mãe e dois. Já pensava nos nomes: Júlio e Caio. Gostava dos nomes, achava-os fortes, másculos. Não tinha conversado com Vera ainda sobre os nomes, mas com jeitinho a convenceria. Estava convicto.

Lembrou-se que de nada adiantaria buscá-los sem que antes fosse ao supermercado. Afinal, era um dia especial em sua vida. Esperado por nove meses. O momento merecia uma comemoração. “E pobre comemora comendo e bebendo... pensou, disparando-se em risos”. Ademais, certamente teria visitas e tinha que oferecer alguma coisa para mastigar.

Rumou para o supermercado. No trajeto foi imaginando o que comprar. Mas logo definiu: compraria cervejas, carnes e alguns enlatados. Foi direto ao açougue. Qual carne comprar? Optou por picanha. “O pobre adora churrasco e eu como um deles, adoro – pensou com cara de riso”. Sim, prepararia um bom churrasco. Foi para casa e preparou tudo antes de ir à maternidade. “Pronto! Agora posso ir!”

Na maternidade Vera já o esperava. Chamou um taxi e foram os quatro para casa. Não comentou com Vera o churrasco, também evitou tocar nos nomes dos novos habitantes daquele lar. Em momento oportuno falaria. Chegaram em casa irradiantes. Acomodaram “Júlio e Caio” e foram apreciar o churrasco, mas antes Vera preferiu tomar um banho. O cheiro de hospital a importunava. Tomou-o rapidamente e foi estar com Arthur.

Amigos de trabalho de ambos foram chegando para dar as boas-vindas aos novos habitantes e parabenizar o casal. Arthur ofereceu-lhes cerveja e, claro, a carne assada. Vera recolheu-se mais cedo. Sentia-se indisposta.

Entre uma cerveja e outra, as brincadeiras. Já passava de onze horas quando Edivânia, funcionária da mesma empresa de Arthur, aparentemente embriagada, voltando do banheiro, dirige-se a Arthur e pergunta-lhe:

- Os filhos são seus Arthur ou do Matheus?

Arthur enrubesceu-se imediatamente e nada respondeu. Apenas riu com o canto da boca, expressando total desprezo. Continuou servindo a todos sem demonstrar irritação, mas com aquela frase na cabeça: “os filhos são seus Arthur ou do Matheus”. Matheus foi noivo de Vera e até amigo de Arthur. Mantinham um bom relacionamento. Não o via há muitos meses...

Ficaram bebericando até as 2:00 h da manhã. Por sorte morava em casa. Portanto, não dependia seguir muitas regras, aquelas que são impostas em condomínios. Arthur poderia deixar o vasilhame usado para ser lavado pela empregada pela manhã, mas preferiu fazê-lo enquanto tomava uma cerveja em paz. Antes, porém, foi ao quarto dar uma olhada nos três: sono profundo. Voltou à cozinha, lavou todas as vasilhas utilizadas, guardou o que sobrou. Não tinha sonho. Sentou-se com mais uma garrafa de cerveja, ouvindo uma música. Lembrou-se da frase de Edivânia: “os filhos são seus Arthur ou do Matheus”. Sentiu raiva. Tinha que ter colocado-a para fora de sua residência. “Que direito ela tinha em me fazer uma pergunta dessa – pensou irado”. Mas talvez o tenha feito por excesso de álcool. “Mas ainda assim é inaceitável. Uma pessoa – colega de trabalho - vem à sua casa e te desrespeita dessa maneira?” O sono não chegou. O dia já amanhecia. Os primeiros raios de sol começavam a invadir pela fresta da janela da cozinha.

Vera acorda e percebendo a sua ausência na cama, chama-o:

- Arthur! Arthur! Onde você está?

- Estou aqui, querida! Já vou!

Levantou-se e foi direto ao quarto. Cumprimentou-a beijando-lhe a face. Olhou os “filhotinhos”, em seguida olhou profundamente para Vera.

- Nossos filhos, querida?

- Nossos. Respondeu Vera sonolenta, olhando de soslaio para os berços.

- Vou preparar um café, querida!

- Deite-se aqui, Arthur! Deixe que Rosimeire o faça. Não tardará a chegar.

Arthur foi ao banheiro e deitou-se ao lado de Vera. Dormiram até às 9:30 h. Levantaram e a mesa do café já tinha sido preparada por Rosimeire, que ao vê-los de pé correu ao quarto para dar uma olhadinha nos novos habitantes. Vera e Arthur sentaram-se para o desjejum.

- Vera! Você tem visto o Matheus?

- Há muitos meses não o vejo, Arthur! Mas por quê? O que fez você se lembrar de Matheus agora?

- Nada não, querida! Apenas lembrei-me dele. Talvez por não tê-lo visto nos últimos meses. Com certa frequência nos encontrávamos e...

- Tem alguma coisa que você quer me dizer, Arthur?

- Não, Vera. Não tem nada. Juro pra você que foi apenas uma lembrança casual, nada mais!

Arthur voltou à rotina no trabalho. Quando deparava com Edivânia tinha vontade em perguntar-lhe o porquê daquela pergunta em sua casa naquele dia. Mas resistiu. Afinal, o trabalho, os colegas eram sagrados e evitar uma desavença seria a atitude mais inteligente. Conteve-se. Talvez um dia fosse oportuno fazê-lo fora do ambiente de trabalho.

Não fosse Vera aceitar os nomes dos “filhotinhos” propostos por Arthur, a semana teria sido pior. Os novos habitantes agora tinham nomes: Júlio e Caio. Na quarta-feira Arthur levantou-se para ir para trabalho, mas desviou seu itinerário e foi a um laboratório: faria um espermograma. Pensou muito na noite anterior e queria tirar a dúvida. Coletou o material e foi para o trabalho. Pegaria o resultado na sexta-feira. Na quinta-feira chegou ao trabalho com semblante de preocupado. Passou o dia todo mais calado, o que intrigou a todos os colegas, pois, era sempre muito comunicativo.

Na sexta-feira passou pelo laboratório para apanhar o resultado. Teve que esperar um pouco até a secretária digitá-lo. Recebeu-o em envelope fechado, colocou no bolso e foi para o trabalho. Não teve coragem de abri-lo. “Vou abri-lo quando estiver saindo do trabalho – pensou decidido”. Trabalhou com certo aperto no peito, mas evitando o silêncio para não criar problemas onde provavelmente não tinha. Não tinha dúvidas que estava tudo certo. Submeteu-se àquele exame para tirar bobagens da cabeça. “Não tinha nada, poderia ter mais dez filhos se ganhasse a loteria, claro! – ensaiou um riso”.

Saiu do trabalho. “Não vou abri-lo antes de relaxar e para tal preciso tomar uma cerveja – pensou decididamente”. Ligou para Vera avisando-a que atrasaria um pouquinho em virtude de tomar uma cervejinha com amigos. Mas foi só. Preferiu um barzinho que desde solteiro gostava de frequentá-lo. Ficava no quarto andar e a vista era muito bonita.

Sentou-se, pediu ao garçom que lhe trouxesse cerveja e uma tábua de frios. Antes que o garçom se afastasse para buscar, mudou de idéia.

- Traga-me, por gentileza, antes da cerveja uma taça de vinho. Um bom vinho, senhor!

O garçom solícito assentiu com a cabeça e foi preparar a encomenda. Minutos depois trouxe-lhe o vinho, advertindo-o que a tábua de frios traria em breve. Arthur provou o vinho constatando que o garçom conhecia mesmo: delicioso. Temporariamente havia se esquecido do resultado do exame que estava em seu bolso. “Mas também o que importava se já tinha o resultado em mente – pensou com um gole do vinho na boca para engolir”. Engoliu-o. Tirou o envelope do bolso, olhou-o. Meteu-o no bolso. O vinho era bom e precisava ser degustado devagar, sem a necessidade de desviar a atenção. Queria saboreá-lo. O resultado tinha muito tempo para olhá-lo. O garçom traz a tábua de frios. “Bem na hora – pensou com satisfação”. Pessoas bonitas entrando e saindo, retratando o dia-a-dia de uma cidade grande: - dava paz observar.

- Mais alguma coisa senhor? Pergunta o mesmo garçom que o atendera.

- Sim. Traga-me mais vinho, por gentileza. Mas o mesmo que me fora servido.

O garçom se afasta e poucos minutos depois traz outra garrafa do vinho e o serve.

- Prove senhor, por gentileza. Aconselha o garçom com muita calma e delicadeza.

- Sim é este mesmo! Obrigado!

O telefone toca. Tira-o do bolso e junto sai o envelope. Atende ao telefone. Era Vera perguntando-lhe se ainda iria demorar. Com o envelope na mão não tinha como esquecê-lo. “Vou abrir e acabar com esta bobagem – pensou decididamente”. Apesar de estar com o teor alcoólico alterado teve paciência para abri-lo sem precisar rasgá-lo. Tirou de dentro a folha digitada em que constava o resultado, motivo de tanta apreensão. Abriu-a. Suspirou e começou a lê-la. Teve um choque, desviou os olhos da folha, olhou as pessoas entrando e saindo. Voltou-se para a folha e desta vez leu-a toda com mais atenção. Não acreditava no que lia. Leu de novo e estava escrito com todas as letras: ESTERIL... Gelou dos pés a cabeça. Tomou meia taça do vinho de um só gole. Tinha alguma coisa errada. Pediu ao garçom mais outras tantas taças de vinho. Embebedou-se. Foi à varanda e não hesitou: pulou, esborrachando-se no asfalto. Não precisou socorrê-lo, não adiantava mais. Morreu instantaneamente.

Na mão esquerda o resultado do exame lido pelo policial que lavrava a ocorrência: ESTERILIDADE AFASTADA...

FIM