Seca
Raucicleine. Meu nome. Sei de onde veio, não. Mas não tem que sofrer. Tem que aceitar. Que nem morte. O senhor não se avexe com isso, não. É da cidade. Deve ter nome bonito. Pequeno. Nossa casa fica perto. Mas de calça comprida demora. Quente, sim. E pra chover hoje só amanhã. Tem vezes que o céu maltrata. E cospe rapidinho. Mas a dobrinha da coxa continua molhada. Empresta a mão do senhor. Visse? Uso nada por baixo, não. Painho disse que é pior. O amigo do senhor sabe. Teve aqui faz pouco tempo. Levou Timbú, Piolho e Zézim. Senti falta, não. Sou grande. Tenho doze. Meu peitinho já dói. Bem aqui ó. Painho fez festa quando os meninos foram embora. Comprou farinha e um bode de três patas e um chinelo de pé igual. Mainha ficou chorando pra Deus. Acho que agradecendo. Aí desmaiou. E parou. Painho falou que vocês é que sabem quem vai. Mas que eu não vou, não. Porque sou menina. De família. Tem uns amigos do senhor que até falam alto. Prometem cuidar. Comprar roupinha. Mandar de volta sem bucho. Painho fala que não. Que tenho que acudir a mainha na cozinha e cuidar do jegue aleijado e mandar recado. Brigo, não. Ele até sabe da minha seca. Da minha sede. Mas fala que a água tá em mim. E me ajuda a procurar. Bem fundo. Tem vezes que a areia atrapalha. O chão endurece. E a chuva de painho vem pelando. Mas boa vontade não tem que sofrer. Tem que aceitar.
Que nem morte.
Conto escrito para a Oficina Narrativas Breves (e outras nem tanto) com o cabra Marcelino Freire. O exercício precisava ter relação com uma música de livre escolha. A minha? "A Triste Partida", de Luiz Gonzaga (outro cabra que mandou bem).