A Madrugada

Todas as noites era quase ensurdecedor o barulho das teclas de uma provável Remigton 100. Começava às 8:00 h e até 3:00 h o ritmo era o mesmo. Parecia que nem água fazia falta àquele aspirante; ou talvez tivesse que entregar o trabalho às 7:00 da manhã.

Somente às 3:30 h interrompia aquela barulheira - que com o silêncio da madrugada ia aumentando – provavelmente para desapertar o nó da gravata. Afinal, nenhum de nós aguenta a gravata sufocando durante o dia e a noite. Mas certamente aproveitava para um golinho de água e, quem sabe um cafezinho: - uma boca de pito.

Parava definitivamente às 4:15 h. Certamente o cochilo. A vida de jornalista, escritor não é brincadeira. A carga horária é muito pesada. E o pior: às vezes escreve algo que sequer alguém nota, outras, criticam como se fizesse melhor.

- Nunca gostei das letras, preferindo sempre os cálculos. Dão mais prazer.

- Mas, Alfredo, imagine se você gostasse então!

- É verdade, Moisés. Faço-o porque tenho que levar o pão e o doce para aqueles catarrentos boquiabertos lá em casa.

- Mas você os ama muito, Alfredo! E não só a eles como também a genitora...

- Ora Moisés...

E esta noite nada será diferente. O fato de ser sexta-feira não interfere em nada. As madrugadas são úteis para os textos do dia seguinte. Por bem terá uma pequena diferença de outros dias da semana: a taça de vinho o fará companhia, posta do lado direito do notebook. O raciocínio à noite é mais fértil, pode-se obter melhores produções. Mas e o barulho da Remigton 100 que iniciaria sua melodia em breve? Esse incomodava os moradores de todo o prédio. O síndico estava com a gaveta cheia de reclamações, não sabia o que fazer. Quem era o causador daquele barulho, ensurdecedor, contínuo e chato? Não havia suspeitos. Aliás, suspeitaram de Alfredo com seus textos madrugada adentro. “Notebook não faz barulho como de uma máquina de escrever, provavelmente velha, sem manutenção e usada por um amador” – se defendeu Alfredo nas várias interpelações.

O barulho ecoava de um prédio vizinho. Mas o síndico já havia procurado o síndico daquele prédio e obtido a resposta: - prezado senhor, nosso moradores são na maioria pessoas novas, bem formadas, por isso, nenhuma delas usaria um equipamento tão obsoleto. Posso garantir-lhe que há muitos moradores que preparam seus trabalhos durante a noite em seus notebooks. Colocamo-nos a disposição de V. Sa., assinado síndico.

Diante da resposta, resta afiar os ouvidos e tentar captar com mais nitidez em qual dos prédios circunvizinhos poderá estar aquele maldito aspirante a escritor ou jornalista. Se bem que poderia ser maldita.

A suspeição sobre Alfredo não estava totalmente descartada. Havia moradores que juravam de pés juntos que Alfredo mantinha sobre a mesa o notebook, mas apenas para livrá-lo da culpa. O provável é que a Remington 100 ficava lá no armário e só aparecia à noite para tirar o sossego de todo os condôminos. Não tinham dúvidas. O síndico tinha que tomar uma providência drástica, ao invés de ficar procurando chifre na cabeça de cavalo, culpando um condômino vizinho, quando o problema está aqui.

Às oito horas em ponto o barulho iniciava sua batucada ritmada. Pelo menos o acusado tinha disciplina e um bom relógio. E não havia nenhuma dúvida que o barulho vinha de um dos prédios circunvizinhos. Mas qual? Em que apartamento? A quem procurar mais?

Durante a madrugada em que o silêncio contribuía para que o barulho aumentasse, os moradores agrupavam-se para detectarem o causador daquele inferno que vinha importunando a todos.

Com os ouvidos de sentinela andavam de um lado para o outro. Caminharam em direção à padaria e perceberam que o barulho aumentou. E foi aumentando a medida que se aproximavam. E de repente no porão da padaria, caixas velhas por todos os lados entre outras sucatas, avistaram ao fundo um homem trajando roupas imundas, cabelos embaraçados de sujeira, que ao vê-los entrando, cordialmente diz:

- Entrem senhores e fiquem a vontade. Estou terminando uma matéria para amanhã...

O grupo de moradores foi entrando e aproximando-se daquele senhor que não deixava dúvida ser um andarilho. Próximo a ele estava uma pilha de papéis datilografados, uma máquina Remigton 100 suja em cima de um caixote. Usava óculos com apenas uma lente e a sua frente restos de marmitex espalhados.

- Podemos, senhor? Indagou um dos componentes do grupo com os papéis datilografados nas mãos.

- Sim, senhor. São matérias públicas e não tem nenhum mistério. Faço-as durante a madrugada para serem publicadas pela manhã.

Houve um silêncio coletivo. Como numa seita fizeram sinal e cada um foi saindo atrás do outro, dizendo apenas em coro:

- Boa dia, senhor. Bom trabalho!

FIM