O RENASCER DA ESPERANÇA

Sérgio Martins PANDOLFO*

O exercício regular da Medicina é um permanente aprendizado. Por mais dilatado que seja o tirocínio do profissional, nunca atingirá ele a plenitude do saber.

Em nossa já bem alongada atividade como cirurgião e tocoginecologista tivemos a oportunidade de atender, há poucos anos, a uma paciente encaminhada por um colega militante na política local (trazia um bilhete), eis que a mesma já houvera sido “desenganada”, para tratamento de seu mal, em três grandes hospitais de Belém, visto tratar-se de pessoa idosa, em mau estado geral e apresentar lesões de grande complexidade terapêutica, além, é claro, da extrema pobreza financeira a agravar seu infortúnio.

Tratava-se de uma senhora de 83 anos, cabisbaixa, desgrenhada, psiquicamente arrasada, debilitada fisicamente e mutilada em sua genitália, patologicamente exteriorizada, pois sofredora, havia muitos anos, de prolapso genital (útero caído na linguagem popular). Em escassas e fugidias palavras relatou-nos sua desdita, resumida a seguir.

Moradora numa dessas remotas e quase intocadas brenhas de nosso vasto “hinterland” valia-se, tão-somente, de um buraco cavado nos fundos do terreno, parcialmente recoberto com peças de madeira e cercado por paredes de palha trançada, à guisa de sanitário, para satisfação das necessidades fisiológicas da família; necessidades, adiante-se (e quem não imagina?), sempre cumpridas sob assédio inclemente de profusão de moscas e mosquitos.

Assim, fica fácil entender que numa dessas “visitas ao banheiro” nossa paciente teve sua genitália (pendente, já o dissemos, pelo prolapso) utilizada pelas moscas para postura dos ovos, que geraram as larvas (miíase ou, popularmente, bicheira) de grande poder destrutivo, que literalmente comeram grande parte da parede anterior da vagina e da bexiga (que lhe fica subposta) e toda a uretra, o que, como é fácil imaginar, além da dor e do desconforto resultou na perda permanente, contínua, sem controle, das urinas. Os bichos (larvas) foram eliminados (pelos "entendidos" do lugar) com creolina em solução aquosa.

Submetemos a paciente a uma extensa e melindrosa operação, para reparo das graves lesões e tivemos que retê-la no hospital por longa permanência (cerca de dois meses) - pois seus familiares em Belém com ela não se importavam nem se dispunham ao atendimento das necessidades higiênicas e terapêuticas indispensáveis na convalescença – só liberando-a após a cicatrização bem estabelecida das feridas cirúrgicas.

Constitui-se o caso relatado em evento patológico raríssimo pela extensão e localização das lesões, tão raro que não encontramos, em extensa pesquisa a que procedemos junto a colegas de grande experiência do Brasil inteiro e através da Rede Médica Mundial de Informática (Medline) nenhum caso semelhante e publicamos nossa experiência em revista médica nacional indexada à rede informatizada e, mais tarde, compondo capítulo de livro especializado na área de Ginecologia e Obstetrícia.

Corrido o tempo, nossa cliente voltou para consulta de revisão de um ano e desse encontro não mais nos esqueceremos. Estava diante de nós uma outra pessoa: alegre, sorridente, solícita às perguntas, bem composta (conquanto trajando modesta indumentária), relativamente bem nutrida e completamente recuperada das lesões de que fora padecente. Sagica, até brincou conosco: “Doutor, agora eu e meu velho estamos numa boa”.

Este caso possibilitou-nos, não só contribuir para a plena recuperação e satisfação de uma criatura humana que já não tinha mais objetivos na vida nem esperança de remissão de seus males, bem como, com a divulgação que fizemos da ocorrência clínica em revista médica indexada à malha mundial especializada da Internet e em livro-texto para uso de estudantes e profissionais da área, poder prestar inestimável contributo aos colegas jovens ou interessados que dele tomarem conhecimento, auxiliando-os na conduta frente a casos assemelhados.

Essa foi, sem ponta de dúvida, uma das maiores satisfações que sentimos ao longo de toda nossa dedicada e diuturna atuação como discípulo de Hipócrates! Algo que não tem paga, mas tampouco se apaga.

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Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES

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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 17/06/2009
Reeditado em 17/06/2009
Código do texto: T1653489
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