Anjos e Demônios

Final de semestre. Haroldo e Cláudia tinham à frente um trabalho acadêmico de entrevistar uma pessoa que tivesse vivido uma experiência socialmente anômala. E como a maioria dos alunos: - precisavam de boas notas para evitar o exame especial.

Cláudia lembrou-se que próxima à casa de sua avó morava uma senhora. E dada a estranheza que esta senhora apresentava, talvez pudesse auxiliá-los na árdua tarefa. Afinal, desde criança via naquela senhora algo excêntrico, apesar da avó sempre se esquivar de suas perguntas.

Marcamos um sábado pela manhã para irmos procurar aquela senhora. Haroldo não parecia muito confiante, mas aceitou. Batemos à porta da casa.

- Bom dia, senhora! Somos acadêmicos do curso de Serviços Sociais e...

- O que vocês precisam mesmo? Perguntou com aspereza aquela senhora.

Aparentava uns 65 anos. Cabelos brancos, olhar cansado, voz rouca em razão do cigarro, pele clara...

- Estamos fazendo um trabalho de faculdade e precisamos entrevistar uma pessoa que tenha vivido uma experiência diferente das socialmente aceitas.

- Mas quem disse a vocês que eu vivi alguma experiência diferente?

- Não, senhora. Não estamos dizendo que a senhora tenha vivido, mas talvez conheça alguém que tenha vivido. Na verdade, estamos sem rumo...

- A vida toda fui vencida pela insignificância; nem com vizinhos pude contar... Não conheço ninguém que possa ajudá-los – retrucou a senhora, demonstrando impaciência.

- Esse trabalho, senhora, será a nossa salvação. Caso não consigamos entrevistar essa pessoa... – exame especial. Argumentou Haroldo.

A senhora levantou-se. Foi à cozinha apanhou um maço de cigarros. Tomou um trago de café e retornou à sala, onde os dois jovens a aguardavam. Acendeu um cigarro. Entre um trago e outro, com olhar penetrante, disse-lhes:

- Aceito colaborar com vocês. Apesar de tudo, nenhum de vocês tem culpa...

Levantou-se novamente, mas desta vez foi ao quarto. Trouxe consigo uma caixa de sapatos. Abriu-a. Estava cheia de papéis, retratos, cartões...

- Meu nome é Letícia Souza. Sou primogênita de uma família interiorana. Meus pais sempre moraram na Fazenda Ipê Amarelo, local em que meu trabalhava como caseiro. Certa tarde, meu pai pediu que eu fosse à fazenda e dissesse ao Senhor Meireles que precisava dele...

“Senhor Meireles, gritei.”

Do interior da casa veio uma voz sonolenta:

“Pode entrar Letícia!”

- Fui adentrando a casa como determinado. Sr. Meireles estava deitado no sofá da sala. Parei à sua frente, percebendo que seus olhos ansiosos percorriam todo o meu corpo. E quando iniciei a frase que me levara ali, fui agarrada e jogada no sofá... Tinha à época 13 anos, mas um corpo de 18. Pernas grossas bem torneadas, lábios carnudos, olhos claros, cabelos loiros sobre os ombros. Não houve tempo, nem adiantava gritar, ou chorar. Sr. Meireles penetrou-me como se o fizesse a uma amante antiga.

- Voltei para casa com um nó na garganta. Diante da influência do Sr. Meireles e da necessidade de preservar o trabalho de meu pai, recolhi ao meu quarto. Não disse nada a ninguém.

- Na primeira oportunidade que tive não hesitei: fugi de casa. Talvez não o tivesse feito caso pudesse ver Sr. Meireles pagando pelo crime. Mas isso era apenas sonho. Ele era influente e acima de tudo endinheirado.

Cláudia interrompeu-a:

- Mas a senhora podia ter procurado uma delegacia...

Dona Letícia sorriu e com os olhos fixos em Cláudia respondeu-lhe:

- Saí de casa aos 13 anos e nunca tinha visto um policial. Como procurar uma delegacia? Eu não podia dizer a ninguém o que Sr. Meireles havia feito a mim. Meu pai tinha necessidade daquele emprego.

- Desculpe-me, Senhora Letícia, continue:

Dona Letícia acendeu outro cigarro, pigarreou e prosseguiu:

- Pedi a um caminhoneiro carona até a capital, e menti que minha tia estava à minha espera. O caminhoneiro olhou-me várias vezes durante a viagem, dos pés à cabeça. Por sorte, conversou muito pouco comigo. Após quatro horas e meia, chegamos. Desci, agradeci-o e pensei: “ onde estou e o que vou fazer... não tenho dinheiro, conhecidos, nada...”

- A primeira noite foi um horror. Encostei-me próxima a uma lanchonete e dormi. No outro dia, apareceu um filho de Deus distribuindo cobertores. Foi a salvação. As madrugadas eram muito frias.

- Numa sexta-feira uma mulher veio falar comigo: “quantos anos você tem?” – Treze. Respondi meio apreensiva. “Não tem para onde ir? – insistiu a mulher”.

“Não senhora, estou sozinha neste lugar”. “Como você é muito bonita, tenho um bom lugar para você”...

- Passei a noite imaginando que lugar seria aquele. Trabalhar na casa de alguém arrumando a casa, lavando as vasilhas, roupas... No outro dia, a mulher voltou. “Quer ir?” “Ir para onde e fazer o que senhora? – perguntei. “É uma casa de dança e você pode aprender a dançar”. Pensei logo que teria uma cama para dormir, comida talvez. “Eu quero sim, senhora!”

- Colocou-me no carro e paramos num lugar bonito. Luzes azuis, vermelhas. Homens bebendo. Mulheres dançando, namorando. Estava gostando do lugar. Mas o que uma menina de interior ia fazer ali. Dançar? Eu não sabia dançar. Aliás, nunca tinha ido a bailes. Meu pai dizia que eu estava muito nova. Naquela noite dormi naquele lugar, num quarto preparado pela mulher que me levou.

- No outro dia, pela manhã, fui convidada para uma conversa com outras mulheres. Explicaram tudo que eu deveria fazer e que por este trabalho seria muito bem recompensada: os frequentadores pagam muito bem – disseram. Fiquei apavorada em saber que outro homem faria tudo que Sr. Meireles fez comigo. Mas eu não tinha outra opção se quisesse comer e dormir...

- Com o passar do tempo fui me acostumando com aquela situação, a qual, aliás, nunca me deu nenhum prazer. Todas as vezes lembrava do Sr. Meireles. Conheci muitos homens. A maioria deles endinheirada.

- Dentre eles havia um que não tinha dinheiro. Era o que mais me procurava e a situação já estava ficando insustentável. Afinal, eu não estava ali para amar ou ser amada, queria dinheiro. Mas ele não entendia e me queria a toda hora. Até que um dia, ele enciumado espancou-me. Cortei-lhe a garganta com uma navalha.

- Cumpri a pena. Conheci o submundo das penitenciárias. Envelheci. Vivo, hoje, neste mundo restrito entre anjos e demônios. Nunca amei ninguém e, creiam, com a mais profunda sinceridade: - sinto muita falta...

FIM