POR ONDE ANDA JOSÉ? ( Por onde andará aquele menino que se levantava com o sol e dormia a contar estrelas em companhia das flores num banco de cimento frio?
Sinto falta dos seus pés descalços pisando minhas calçadas e ruas. O tempo passou assentando a poeira do inexorável redemoinho da vida.
Embora lhe pertencesse o mundo, no que diz respeito à obra do Criador, José nada possuía. Sequer um mísero travesseiro onde recostar a cabeça.
Lembro-me tão bem...Aqui chegou, pareceu-me saído do nada. Acompanhava com dificuldade a mãe, ainda jovem mulher, alquebrada por uma vida miserável. Júlia a carregar uma trouxa de roupa, José, quase arrastado, chorava de fome e de cansaço.
Tão logo os seus pequeninos pés tocaram o meu chão, senti-me afagada. Desejosa de envolvê-lo num abraço de boas-vindas e de amparo.
Ainda que não escolhessem um abrigo, seus pés cansados os conduziam, além dos seus limites, a se protegerem sob uma marquise de uma grande loja.
Atenta os acompanhei a este rústico abrigo, de certa maneira ficaram mais protegidos. Isso, a mim, lembrou-me uma antiga estrebaria há dois mil e nove anos atrás.
A noite já avançada em horas. Pelo menos até o amanhecer permaneceriam em paz. Pensei.
Naquele momento de suas vidas, Júlia deu pão e água para o filho, beijo-o carinhosamente e fez com que ele se deitasse ao seu lado num trapo estendido sobre a calçada. Não sem antes fazer um travesseiro de panos.
José, um meio-sorriso, dormiu rapidamente. Fui testemunha das lágrimas daquela mulher e do sono confiante do menino. Nem o cansaço da peregrinação fez com que ela dormisse. Foi uma terrível noite insone.
Quando a manhã, sem pressa, imprimia no horizonte cores vivas, predominando o vermelho e, no céu, raras e tardias estrelas a desaparecer, Júlia morreu.
E eu, só eu pude acompanhar o seu sofrimento. Pressentira a mulher o seu fim tão próximo? Insone, sentia dores? Rezara?
Os primeiros raios do sol iluminaram àquele rostinho um tanto travesso. A claridade fez com que José abrisse e fechasse os olhos seguidamente e os esfregasse com força. Tentava situar-se espaço e tempo e chamava pela mãe insistentemente.
- Mãe acorda e veja que cidade bonita e grande. Tem muitas árvores e um tanto de flores numa praça linda. Acorda mãe! Mãe, eu vou sair um pouquinho, vou fazer xixi.
Júlia não mais poderia ouvi-lo. José inocente corria feliz de um lado para outro, admirando-se de tudo.
O cheiro agradável de pão fresco fez com que o menino encompridasse o olhar tentando desvendar às delícias expostas em uma vitrine de uma confeitaria.
Alguém se condoeu ao vê-lo, percebendo os seus olhinhos cobiçosos, adivinhou a sua fome. Conduzido ao interior da confeitaria, ali lhe foi servido um pingado, bolo e pão. Apesar de sua tenra idade, José recusava-se a comer junto ao balcão. Pedia ao moço que embrulhasse os petiscos e lhe emprestasse o copo porque queria dividir com a sua mãe que dormia ali pertinho. Aceitou comer mediante a promessa de que levaria igual porção para a mãe. Saboreou tudo que lhe foi servido e saiu apressado sem esquecer-se de agradecer da maneira que a mãe lhe havia ensinado:
-Deus lhe pague moço!
Num pé só, junto à mãe. Ansioso tentava acordá-la. Impaciente, puxava-lhe o braço, a mão e o vestido, falando sem parar:
- Mamãe, acorda depressa. Esta cidade é mesmo muito grande e bonita. Tem um moço muito bom que me deu café e leite, bolo e biscoitos. Eu comi e ainda trouxe para a senhora. Aqui todos são muito bons!!!
Em pouco tempo, José muito nervoso, gritava no intuito de acordá-la, foi quando o lanche que trouxera para a mãe caiu-lhe das mãos. O café com leite derramado escreveu na calçada como que a trajetória de sofrimento daquelas duas criaturas.
O tempo não para. Os matutinos transeuntes deram vida às ruas. Os gritos e o choro do pequeno menino logo atraíram a atenção das pessoas e logo se aglomeram entre curiosos e aflitos em torno dos infelizes. Alguns, ao verem aquela mulher indiferente aos gritos e aos apelos desesperados do filho, julgaram-na bêbada. Outros, hipoteticamente morta ou desmaiada. O número de pessoas aumentou. Um médico que passava e atraído pela multidão, teve dificuldade em prestar socorro à infeliz mulher. Júlia estendida na calçada sobre trapos, o menino abraçado à mãe, desesperava-se. Um breve exame e foi constatada a morte da mulher.
Foi um Deus nos acuda. Logo acionados padre, polícia, ambulância, assistência social. Todos se mostraram condoídos com a situação. Dias e dias se passaram. Muita investigação, pouco se apurou. José órfão de mãe. Órfão de pai que poderia estar vivo, ou não, perambulava em companhia da mãe. Naquele momento fora entregue a sua própria sorte.
Custa-me reviver o sofrimento do menino. Presenciei-o impossibilitada de, num abraço, confortá-lo. Sem nem mesmo saber quem seriam aquelas pessoas que eu vira chegar na madrugada fria. Mas, recebi-os sem preconceito.
Quanto a José, considero-o um filho. A mãe aqui o deixara. Tornara-se meu por direito.
Pensei em meus outros filhos, estatisticamente milhares. Acreditei que dentre eles, reconhecendo a urgência e a gravidade da situação, quem sabe aparecesse alguém para adotá-lo como eu o fizera de pronto.
Os meus filhos professam varias religiões. Alguns são fanáticos ao professar o seu credo. Religiosamente sérios ou não, ateus de fato ou ateus graças a Deus. Gente de toda classe social e econômica. Muitas possibilidades eu pensava. Esses meus filhos tão ligados à religião, seriam ligados ao seu semelhante com igual intensidade. Naquele momento, ninguém mais que o meu José necessitava de amparo. Logicamente, ele terá muitas chances de adoção, eu pensava antes de conhecer melhor aos meus outros filhos.
O menino ainda pequeno, não tinha ideia do que lhe pudesse acontecer. Chorava pela mãe, o seu único amparo. Comida, roupa e abrigo temporário não lhe faltaram.
O caso tão comentado na cidade chegou a uma emissora de rádio local e tornou-se alvo de uma pesquisa de opinião-pública:
José seria adotado por uma família local, cheia de amor e sem restrições? Nas opiniões, o mesmo traço pessimista:
- Se José fosse um bebê seria mais fácil. Aos três ou quatro anos, difícil. Difícil a sua integração à nova família. Nova, eu pensava, como se José já houvesse possuído família, no contexto de família como a conhecemos. Outros iam mais longe as suas considerações:
- Filho de quem? A hereditariedade é muito forte, não dá para arriscar. Falava-se até em uma precoce perversão. Eu me negava a acreditar em tamanho absurdo.
As próprias Igrejas, nesse caso omissas, das quais, os seus dirigentes espirituais ainda que não pudessem, ou não quisessem abraçar à causa tão nobre, podiam, na minha modesta opinião, tentar despertar a consciência das pessoas face ao problema que se havia formado.
Percebi, então, que a misericórdia atinge primeiramente ao coração dos economicamente humildes.
José foi entregue a D. Inês, uma pobre viúva mãe de quatro filhos ainda pequenos. Não houve nenhum tipo de questionamento. Problema resolvido, de certa forma a contento.
Eu o sabia apenas adiado.
A bondosa mulher trabalhava como faxineira em uma escola, salário magro. Emendava o dia com a noite trabalhando honesta-incessantemente. Mais do que dinheiro, faltava-lhe tempo para dedicar-se aos filhos. Vontade de acertar e muito amor, isso ela possuía. José uma boca a mais para sustentar, uma preocupação acrescida a outras.
Ainda assim, fiquei feliz com a atitude desta filha. Talvez a menos indicada, no entanto, a única a oferecer o seu amor de mãe e a sua solidariedade cristã de fato.
O tempo passando. Meu filho a crescer bonito e travesso. Acompanhei a todos os seus passos certos, incertos e em falso. Constatei tristemente a mais erros do que acertos, motivados pela falta de assistência da atarefada mãe. D. Inês perdera o controle sobre seus filhos, rédeas, não as tinha mais.
José, aos poucos, foi-se envolvendo com pequenos furtos, José perambulava, faltava às aulas. Ninguém que o ajudasse nos deveres escolares e fugia à reprimenda. Cansado, dormia no banco da praça. Lugar que elegera seu. Comentava-se que o menino havia se tornado malfeitor devido a sua hereditariedade, que um menino filho de não-sei-quem levara os irmãos para o caminho do mal. Chegaram ao cúmulo de culpar à Júlia:
- Mulher vadia que deixara o pequeno filho e um tão grande problema social.
Quanta incoerência! Enraivecia-me com os meus outros filhos que atiravam pedras sem remorso, sem se darem conta de que, se o meu José estava vivendo naquelas condições, a eles cabia uma grande parcela de culpa.
Ainda hoje eu me exalto quando penso. A bem da verdade, só a Deus pertence o julgamento em questão. É que me sinto péssima por haver perdido o meu menino.
As autoridades locais o despacharam para a capital do Estado, para uma “Casa de Recuperação para Menores Infratores”. Faço-me sempre as mesmas perguntas:
-Será que José se reabilitou? E outras crianças infortunadas como José, o que conseguem nestas casas de reabilitação? Haverá neste lugar de nome tão pomposo, condições de reabilitação para uma criança como a minha? Terá o meu menino conseguido um mínimo de amor, calor humano e paz?
Sei que cuidar de crianças desamparadas é uma difícil missão. Se há realmente uma tentativa de acerto está criado um bom caminho, posto que esse itinerário seja escrito em cima do amor ao próximo e da abnegação. Conquista-se assim a chave do paraíso. Ao contrário, está formado o caos.
Por onde anda José? Terá ele encontrado o portador desta chave? Sinto falta dos seus pequeninos pés descalços pisando minhas calçadas e ruas. Por onde andará aquele menino que se levantava com o sol e dormia a contar estrelas em companhia das flores num banco de cimento frio?
Devo confessar um vazio, obra de minha saudade. E certa mágoa em relação aos meus outros filhos. Custava a eles, a quem Deus mais concedeu, tomar para si a difícil, porém necessária incumbência? Afinal, José, um menino tão só e pequenino.
Eu nada pude fazer senão amá-lo, porquanto eu seja apenas UMA CIDADE igual a tantas outras. Uma cidade com os filhos iguais a tantos outros... Onde andará o meu pobre menino? Sinto saudade dos seus pequeninos pés descalços pisando minhas calçadas e ruas...