Angola - O Jardim dos Anjos -O menino do Huambo (cont.)
Mário e o rapaz estavam sentados debaixo de uma árvore como que em vigília.
Ao fundo, no horizonte, o clarão dos bombardeamentos antecipava-se alguns segundos ao som polvoroso das explosões.
- Sabes, Mário, tenho pensado muito na minha cor estes últimos meses.
- O que é que tem a tua cor?
- Nada, esquece…
- Rapaz, ouve o conselho de um preto: Não queiras mudar de cor! Ser branco pode já não ser o que era, mas sempre é melhor do que ser preto.
- Será que quando morrermos, lá no céu ou no inferno, também vamos ser diferentes por causa da nossa cor?
- Não sei… Acho que depende de qual for a cor de Deus ou do Diabo.
O rapaz, sentindo-se incomodado com o gracejo cínico de Mário, calou-se e ficou a olhar para a pequena cruz improvisada na campa do menino.
- Acho que o Charles vai ser um anjo.
- Sim, vai ser um anjo.
- Ele não teve tempo de mudar. Agora já nada pode magoá-lo e nem sabe o que é cor ou dor, nem sabe o que é ter medo ou…
O rapaz calou-se.
- Ou o quê?
-Ía dizer morte, mas isso ele já sabe.
-Não sabe, rapaz, não sabe. Ele só morreu, não teve tempo de saber o que é a Morte.
-Tu sabes?
- Sei.
- É por isso que já não queres seguir, já não queres fugir mais?
- Não. Não é o que sei sobre a morte que me faz parar, mas sim o que sei sobre a vida. Que vida é esta que levamos nesta guerra? Achas que no fim desta estrada vamos encontrar a Terra Prometida? Nada disso. Vamos continuar a fugir de tiros e de mortes sem sentido. Esta guerra acaba porque saímos em debandada do Huambo? Não! A guerra já está dentro de nós, embutida, marcada a ferro e sangue. Os homens que nos perseguem estão tão desesperados como nós, talvez até mais porque esta é a vez deles de matar, matar irmãos angolanos, mulheres, crianças. Desta vez serão deles os pesadelos, os remorsos. Pobres coitados.
O jovem sentou-se com as pernas cruzadas e começou a desenhar na terra molhada.
- Queres dizer que sentes pena daqueles que vêm para nos matar?
- Pena, não, mas compreendo que eles não têm outra hipótese. Sabes o que acontece se um dos soldados se recusar a perseguir-nos?
- Imagino…
Os clarões, ao fundo, continuavam sem parar, sem diminuir o ritmo de destruição.
- Quanto tempo achas que falta para a UNITA nos encontrar?
- Enquanto houver bombas lá ao fundo, acho que vão demorar mais.
Os dois compreenderam que o tempo estava a ser medido de forma diferente, não por horas ou minutos, mas pelo destino, por um destino certo que eles haviam decidido aceitar.
A chuva voltou a cair, teimosa.
- Aprecia esta chuva, rapaz. É grossa sem ser intensa. Cada gota é caprichosa, é livre, independente, mas exigente. Esta chuva obriga a natureza a meter-se nos seus assuntos. Ouves os sons das gotas, mas mal as vês. Altera tudo ao seu redor, mas sem provocar dor. Esta chuva vem do céu, mas cai directamente na nossa vida. Esta chuva africana é melancolia em estado líquido.
Adormeceram, indiferentes ao caos que acontecia no horizonte nocturno do Planalto Central.
-Jovem, acorda! Vem gente aí!
O rapaz acordou esbugalhado, mas sem proferir um som que fosse.
-Vem, rápido – disse Mário em posição de avanço militar.
-Mas temos estas coisas todas aqui… O Charles…
-Deixa, deixa! Vamos sair daqui!
Os dois saíram tão silenciosamente quanto possível para evitar que o som dos seus passos no capim os denunciasse.
Cerca de cinquenta metros depois, dentro da mata, as vozes do grupo que se aproximava eram já audíveis. Mário fez um sinal para pararem. Esconderam-se dentro de um arbusto denso como uma parede e ali ficaram, quase abraçados, à espera.
Ainda faltavam alguns minutos para amanhecer.
Primeiro avistaram dois pisteiros*. Caminhavam lentamente. As caras camufladas com fuligem de carvão para evitar o reflexo do suor, as fardas verdes escuras com ramos amarrados faziam entender que aqueles homens sabiam como fazer parte da vegetação, como encontrar pistas nos caminhos, no capim. Pareciam dois fantasmas.
-Esteve alguém aqui! – disse o militar da frente em tom muito baixo e cuidadoso. O outro respondeu com um dedo na boca a pedir silêncio. Ficaram ali, imóveis, parecendo parte da floresta. Passaram cinco minutos a perscrutar tudo ao seu redor.
Mário e o jovem, sem sequer respirar, esperaram aterrorizados, sentido que os olhos dos homens, os narizes, o sexto sentido de guerrilheiros os tinham descoberto ou iriam descobrir a qualquer instante.
Um dos militares levantou-se bruscamente e disse:
-É pessoal da coluna. São civis. Deixa-os ir.
O segundo, automaticamente, emitiu um assobio despreocupado e a resposta não tardou: - Está limpo?
-Está limpo, meu capitão!
Mário e o rapaz viram, então, chegar um grupo de militares da UNITA com um prisioneiro.
O capitão deu ordens rápidas, sem nunca elevarem muito a voz, criando rapidamente uma área de segurança. Do grupo de cerca de dez militares ficaram somente seis, contando com o capitão e o prisioneiro. Os outros, pensou Mário, foram tomar posições para assegurar o perímetro.
-Vai ser aqui! – disse o oficial.
O capitão era um homem de cerca de 40 anos, negro, com modos militares exagerados. A farda suja, a pistola à cintura, a metralhadora a tiracolo, as botas bastante gastas davam-lhe o aspecto do guerrilheiro típico, um Che Guevara africano. A sua altura e postura destacavam-no do grupo, parecendo ser o único com formação militar convencional. Sentaram-se todos e foram bebendo água e acendendo cigarros despreocupadamente, esperando o amanhecer trazer a luz da manhã.
O capitão levantou-se e afastou-se um pouco do grupo.
-Vocês os dois, fiquem de sentinela. Vocês preparem-se para fuzilar o prisioneiro.
Mário via toda a cena como um filme. Teve a sensação profunda de estar em controlo total dos seus sentidos. Apesar do terror que sentia, alguma coisa o levava a uma percepção de pormenores nunca sentidos. A chuva voltava a ter som, voltou a sentir os odores da terra, o movimento sincopado das árvores, dos insectos, a temperatura ténue das suas mãos e o tremor frio das suas entranhas que lhe diziam que iria assistir à execução sumária de um homem.
O rapaz olhou para Mário e apertou-lhe a mão com força. Mário desviou os olhos.
Os dois militares aproximaram-se andrajosos, hesitantes.
-Aqui?
-Aqui, já disse!
O prisioneiro ergueu-se sozinho, com as mãos amarradas atrás das costas, sem denunciar qualquer nervosismo.
Era um homem negro, alto e bem vestido, apesar de ter a roupa rasgada no colarinho da camisa e nas calças. As feições correctas, o cabelo bem aparado davam-lhe a dignidade que a situação exigia.
-Tragam o prisioneiro – disse o capitão.
Subitamente, um dos soldados saiu da mata com o casaco do jovem cheio de recados dos refugiados e entregou-o ao capitão, fazendo um gesto com a cabeça a indicar a direcção onde o encontrou e desapareceu novamente nos arbustos sem dizer palavra.
O capitão sentou-se no chão com o casaco cheio de recados entre as pernas. Pegou em alguns e começou a desfolhá-los com breves paragens como se estivesse a ler somente alguns dos recados.
Fechou o casaco com todos os recados e chamou o soldado mais próximo.
-Diz-lhe para voltar a pôr onde o encontrou – disse. Voltou-se para o outro e disse alguma coisa ao ouvido, sem haver nenhuma reacção da parte deste.
-Tragam o prisioneiro! – repetiu o capitão, já com a voz mais firme.
Os militares olharam lentamente um para o outro.
- Meu capitão, o prisioneiro já está aqui…
-Eu sei que está! Vamos tentar dar alguma dignidade a isto.
-Sim, chefe.
O prisioneiro deu um passo em frente, cambaleante.
-E agora? – inquiriu um dos soldados.
-Ok! Pronto. Estamos aqui numa execução sumária por motivos de… - o capitão tossiu, ganhando tempo para escolher as palavras – isso, por motivos de guerra! O senhor sabe porque vai ser fuzilado?
-Sei.
-Sabe quais são os crimes que lhe são imputados?
-Sei. Isto é, acho que sei… Sim, imagino quais serão.
-Bem, se sabe, quero dizer, se imagina, pode, por favor, descrevê-los a este pelotão de fuzilamento?
O homem encheu o peito de ar, numa expressão de força e auto-controlo.
-Posso, porém, não o vou fazer. Só vou ser fuzilado porque você não tem saída, está encurralado. Nem pense que o vou ajudar neste pequeno circo que quer montar aqui.
-Você está amarrado no meio do mato, capturado pelas FALA* e eu é que estou encurralado?
-Irónico, não? Você capturou-me, amarrou-me, caminhou comigo dois dias e uma noite para me fuzilar aqui. Porquê aqui e agora?
-Pode ser que esteja a atrasar a marcha – retorquiu o capitão com expressão de quem aceitava este pequeno desafio.
-Pode, pode ser. Mas também pode ser que você tenha percebido que está encurralado, que não vai acontecer nada que o impeça de me fuzilar… Tenho vindo a apreciar o seu comportamento e dos seus homens.
-Muito bem. E chegou a uma conclusão, presumo – disse o capitão, sem disfarçar um pouco de divertimento.
-Sim, por muito que me custe a admitir, você está a fugir da guerra. Andamos em círculos para evitar o encontro com os refugiados. Você dá-lhes tempo, dá-lhes avanço. Não quer encontrá-los cara a cara. Teria de os matar, já que não pode fazer mais prisioneiros. No seu íntimo, você sabe que, lá à frente, estão mulheres e crianças, desarmados, aterrorizados. Custa-lhe pensar nesse encontro, no facto de ter de ser você, mais ninguém, a por fim a estas vidas.
Eu fui durante algum tempo o motivo, a desculpa para este atraso, mas os seus homens começam a ficar agitados, sentem o sabor a sangue na boca. Por isto tudo, concluo que você está encurralado, tem de decidir já, mas sabe que, depois de me matar, tem de voltar à perseguição e encontrará, inevitavelmente, a coluna de refugiados.
-Não lhe parece psicologia barata? Um pouco elaborado demais?
-Será? O fosso que sente entre si e os seus homens é imaginação minha? Atribui-lhes o valor que eles merecem por serem irmãos de armas? Ou reconhece neles a vertigem de matar que você insiste em negar?
-Estamos em guerra, é com eles que posso contar… Daríamos a vida uns pelos outros, estou certo.
O homem encarou o capitão de frente.
-Mas quando chega a hora de matar? Matariam uns pelos outros? Você mataria?
O capitão levantou-se em silêncio e olhou para os soldados.
-Meu capitão, ele já acabou?
-Já, ele já acabou.
O capitão começou a andar devagar à volta do prisioneiro, examinando-o, com a mão na coronha da pistola.
-Tem algum recado para alguém?
-Não – disse o homem tentando manter-se firme.
-Bem, sendo assim, vamos prosseguir – dando dois passos para trás.
-Pelotão! Preparar!
Os dois homens escolheram a sua posição a cerca de cinco passos de distância do prisioneiro. Manejaram as armas que traziam ás costas, trocaram os carregadores simultaneamente, retiraram a segurança das armas, escolheram a patilha tiro a tiro e meteram bala na câmara.
-Apontar!
O prisioneiro começou a respirar ofegante, mas sem proferir nenhuma palavra.
-Fogo!
As detonações ecoaram violentas pelas árvores, pelo capim, pelo ar.
O jovem escondeu a cara nas pernas e começou a chorar baixinho.
Passaram alguns segundos e Mário toca ao de leve no rapaz.
-Viste o que eles fizeram? – disse baixinho.
O jovem sacudiu Mário e deixou-se cair lentamente no chão, num choro silencioso.
Mário ouviu o capitão gritar: - Vá, já está! Seguir a marcha.
O pequeno grupo de homens desapareceu na mata densa assim como entrou.
Mário esperou até ter certeza que eles se haviam afastado o suficiente e disse quase eufórico: - Viste o que eles fizeram?
-Vi.
-Ele está vivo – gritou Mário correndo na direcção do prisioneiro – Eles não o mataram!
O jovem deu um salto como se tivesse apanhado um choque.
O homem estava ajoelhado, apoiado na própria cabeça, com a face no chão, sempre em silêncio.
-Senhor, o que foi que aconteceu?
-Não sei – respondeu, começando a perder o controlo da respiração.
Rapidamente desamarraram o homem que caiu desamparado, sem forças.
Mário notou que ele estava em choque.
-Vá, agora calma, já passou – disse abraçando-o.
-Filhos da mãe! – gritou com todas as forças que ainda possuía.
O jovem ficou em pé, tentando perceber o que se passava. Olhou em redor e viu que os militares tinham deixado uma sacola esquecida.
-Mário, vem ver isto!
Mário abriu a sacola e viu, com espanto, que continha três cantis de água, três latas de ração de combate e o casaco do jovem com os recados dentro.
-Eles sabiam que estávamos aqui. Eles deixaram isto para nós…
Os três entreolharam-se longamente, emocionados e voltaram em grupo para junto da campa improvisada de Charles Aznavour.
-Mário, achas que foi Deus?
-Não, jovem, tenho a certeza absoluta que não foi Deus.
*Pisteiros - Soldados especialistas em perseguição.
*F.A.L.A. – Forças Armadas de Libertação de Angola – Exército da U.N.I.T.A.