TERAPIA DE VIDAS PASSADAS

O garçom trouxe a conta a décima sexta (e última) cerveja que iríamos tomar naquele encontro que se deu por puro acaso. Eu estava absorto olhando uns sapatos no shopping quando senti uma mão forte no bolso trazeiro de minha bermuda e o anuncio do assalto. Gelei. Era uma brincadeira dos gêmeos Leônidas e Leonardo, colegas de futebol soçaite, batido todas às quintas feiras das 22h à meia noite. Passados o susto e a explosão de risos, sentamos na praça da alimentação para o chopinho que a ocasião merecia. Mas o peste do garçom demorou tanto que o chope chegou quente e com a espuma murcha, não tinha tira gosto que prestasse. Não lembro mais de quem foi a idéia, mas fomos para a Imprensadinha, um bar minúsculo que fica numa rua de pedestres que a prefeitura insiste em chamar de humanizada. Como se não fosse só seres humanos que utilizam ruas. Ainda bem que os outros animais não precisam delas. Nesse bar tudo é apertado. Nas mesas encostadas nas paredes, cabem apenas duas pessoas. Depois do meio dia, quando a sombra dos edifícios tomam conta da rua, as mesas são colocadas no calçadão e a coisa melhora um pouco.

- Um sarapatel com pimenta, limão e farinha. Meiota de Pitu, três caldinhos de feijão e uma Antarctica véu de noiva.

- É prá já, patrão!

Enquanto esperávamos, Leo perguntou se eu sabia que Leon estava fazendo terapia. Quase engasgo com a fumaça, tal a explosão de riso.

- Leon? Fazendo terapia? Só pode ser para comer a terapeuta!

- Não rapaz, a coisa é feita com a maior seriedade. Ou pelo menos ele está levando a serio. Disseram que essa inquietação que ele está sentindo ultimamente são coisas de vidas passadas mal resolvidas e que com esse tipo de terapia, vai superar o trauma e poder encarar o problema sem constrangimento. Vai ver-se livre do carma. A coisa funciona como a bengala do delegado. Resolve tudo pelo pé.

Explodi em riso outra vez. Só mesmo Leon para acreditar numa bestice dessas.

- Vamos mudar de assunto que ele está vindo aí.

Leon chegou enxugando as mãos no lenço. – Isso é um boteco salafrário. Não tem água na pia. Tive que lavar as mãos na cozinha...

- Se você lavou as mãos naquela bacia de plástico vermelho, acabou de sujar de vez. (risos)

Chegaram a cana e os caldinhos. Fizemos o brinde “às nossas boas qualidades” e eu disse a loa do grande (em todos os sentidos) poeta Ascenso Ferreira;

“Branquinha, branquinha, é suco de cana

Pouquinho é rainha, muitão é tirana “...

Leo bebeu de um trago só. Eu bebi saboreando em goles pequenos, Leon despejou um pouco no pé da parede e encheu a boca, deixando descansar um pouco antes de engolir, como fazem os enólogos. O caldinho de feijão estava no ponto. M a r a v i l h o s o... Permanecemos calados enquanto acendíamos os cigarros.

Muito sério, olhando-me fixamente nos olhos Leon disse.

- Meu amigo, estou fazendo terapia de vidas passadas...

- hum, hum!

- Você devia fazer também. Todo mundo devia fazer para entender o porquê de estar aqui. Somente através da regressão podemos entender as coisas boas e más que nos acontecem. É impressionante. Dá um novo sentido à nossa existência, nos torna mais tolerantes. Faça e você vai entender a razão de ter nascido.

- Pelo que sei, estamos aqui apenas para garantir a próxima geração. Para passarmos adiante a carga genética que herdamos de nossos antepassados. Não me diga que você acredita nessa conversa fiada de reencarnação?

- Você nunca leu Kardec?

- Li sim. E daí?

- Tudo a ver. Planejamento reencarnatório para acerto de contas...

- Duas coisas Leon. Primeiro. Espírito é invenção humana. É o artifício inventado como garantia contra a morte. O cabra não aceita sua finitude como qualquer organismo vivo e cria um clone de constituição etérea ou antimaterial, que é preexistente e que permanecerá vivo após a morte do envoltório biológico. Segundo. Na improvável hipótese da existência do espírito, por que as diferenças não são acertadas no campo espiritual? Por que o sofrimento tem que ser a condição sine qua non para alcançar a felicidade? Por que o Kardecismo não eliminou essa excrescência pregada pelas religiões como um todo e supervalorizada pelo cristianismo?

-Mas espírito existe. É inconcebível que nossa existência termine com a morte pura e simplesmente.

- Meu caro Leon, eu não quero que você tente me provar a existência de espíritos, deuses etc. procure para você mesmo essa justificativa, mas que tenha fundamento lógico, baseado em fatos reais e que sejam passíveis de prova.

- Os fenômenos mediúnicos estão aí para tirar qualquer dúvida que se tenha.

- Até agora tudo foi muito bem explicado pela parapsicologia e o que ainda nos parece inexplicável, será devidamente esclarecido com o progresso da ciência.

Leo permanecia calado como assistente de partida de tênis, acompanhando com os olhos cada um que estivesse falando.

- Você fala sem conhecer. Você não leu tudo nem os mais recentes estudos de casos envolvendo manifestações espirituais. Existem estudos e experiências sendo feitas por entidades sérias que atestam que somente por influencia de algo inusitado tal fato poderia acontecer.

- É o que eu já disse. O progresso da ciência explicará mais cedo ou mais tarde todos os fenômenos que hoje são incógnitas. O desenvolvimento da nanotecnologia, da física quântica, a decodificação do genoma e outros estudos explicarão num futuro bem próximo tudo aquilo que hoje consideramos mistério assim como o microscópio e o telescópio fizeram, um revelando os seres microscópicos responsáveis pela degradação dos alimentos e transmissão de doenças e o outro os grandes conglomerados celestes que até então estavam no campo ignorante das superstições.

- Você não pode considerar superstição as curas obtidas através de cirurgias espirituais, as premonições, o d’éjá vu, os passes...

- Pode até parecer uma contradição de minha parte, mas tudo isso existe e está diretamente ligado ao poder de nossa mente e à herança genética.

Leon, pela sua maneira de ser, estava ficando impaciente com o rumo da conversa. Leo pediu outra rodada de cerveja. Houve uma pausa. Bebemos saboreando a cerveja. Leon me olhava fixamente como que meditando em tudo que eu havia dito e foi de chofre que ordenou. – Explique-se. Troque em miúdos tudo o que você disse.

- Leon, preste atenção no raciocínio lógico do que vou lhe dizer. Vamos retroceder a sessenta mil anos atrás. O ser humano, mutação recente dos primatas superiores é o único animal desprovido de couro ou quaisquer outras expansões tegumentares capazes de oferecer proteção contra as intempéries, não possui dentes fortes nem garras para serem usados na defesa, não consegue enxergar com baixa luminosidade, pois evoluiu para habito diurno e precisa dormir na média, um terço da sua existência. A fêmea tem gestação longa e altamente comprometedora da postura. O recém nascido é dependente dos pais por pelo menos quatro anos. Em compensação desenvolveu o neocórtex cerebral que lhe confere habilidade tanto manual como no raciocínio lógico muito mais veloz que os outros animais e a capacidade de criar hábitos alem daqueles ditos instintivos, sendo, portanto ilimitada sua prontidão para inventar, aprender e transmitir conhecimentos. Por causa disso o ser humano dominou a agricultura, a pecuária, a caça, a pesca, o fogo e com ele a cerâmica e a siderurgia. A alteração do nomadismo para o sedentarismo propiciou horas de lazer e de não fazer nada. O ser humano dedicou-se à filosofia para explicar a natureza no entorno e a melhorar a comunicação com seu semelhante. O homem passou a dominar o conhecimento. Mas as forças naturais estavam muito além da sua capacidade assim como o perigo constante do ataque de um predador. Para esses foram criadas as armas, flechas, machados, lanças e para as forças naturais criaram-se os deuses. Na obscuridade das cavernas, qualquer sombra em movimento poderia significar a morte e somente um ser onipotente, onipresente e onisciente poderia dar a proteção exigida para todas as horas dos dias breves demais no inverno e longos demais no verão. Essas horas ociosas ensejaram a avaliação de que um ser portador de tantas qualidades não podia ter sua existência limitada a míseros vinte ou quarenta anos e pela expressão dos genes, quando repetimos gestos ou atitudes de nossos ancestrais, sem que ao menos tivéssemos conhecido, fez com que os mais velhos que estavam observando, achassem que era o morto que de alguma forma havia voltado. Estava criada a falácia da reencarnação e a comunicação com os espíritos que se manifestam quando o médium está em transe. Ora, nosso DNA é composto por um zilhão de códons que são as combinações três a três dos aminoácidos timina, adenina, citosina e guanina e cada um desses códons ou conjunto deles conta uma historia, revela um gesto, uma atitude herdada de qualquer geração anterior e que fatalmente transmitiremos aos nossos descendentes indefinidamente, assim como a cor dos olhos, a textura do cabelo, a habilidade para tocar instrumento ou dança, ou artes visuais. O gosto pelas viagens ou pelo enclausuramento, a espontaneidade ou a maneira taciturna de ser. Assim como transmitem coisas palpáveis, como formato do corpo, defeito físico ou propensão para engordar, os genes transmitem histórias e situações vividas por nossos ancestrais que quando repetidas em nossa presença temos a sensação do d’éjà vu. Somos uma pilha que funciona com a carga elétrica que recebemos diretamente do sol ou através dos alimentos e podemos transmitir parte dessa carga para os seres que nos cercam com a imposição das mãos, que são os passes, ou através do pensamento que chamamos de telepatia, de praga, mal olhado ou maldição.

O garçom trouxe outro sarapatel e nova rodada de Pitu. Dessa vez fizemos o brinde ao esclarecimento intelectual dos homens bons. (nós é claro). Tradicionalmente, cada rodada de cachaça exige uma loa. Dessa vez foi de autor desconhecido.

“Cachaça é filha da peste,

É neta de satanás,

Desgraça o pai de família,

Desencaminha o rapaz,

Setenta capetas juntos

Não fazem o que cachaça faz.

Quem bebe cachaça é muito corno,

Mas quem não bebe cachaça é muito mais”

Enquanto eu retemperava o sarapatel com pimenta e limão, Leo perguntou.

- O que você tem a dizer sobre mediunidade?

- Trata-se de faculdade que algumas pessoas têm em expressar a memória contida no DNA. Isso pode ser conseguido com treinamento, na maioria das vezes dentro de terreiros ou centros espíritas ou em qualquer outro local de recolhimento como nas tribos indígenas onde os pajés são formados dentro da mata suas atuações estão diretamente ligadas às ondas cerebrais dos presentes que induzem à introspecção. Igrejas, centros, terreiros com seus cânticos, defumadores, pregadores, instrumentos musicais e principalmente alucinógenos como o santo daime, os aluás, as juremas, o vinho ou os cigarros de maconha, fumo, marijuana, a coca, a papoula, o timbó levam os iniciados ao estado de transe, talvez propício para que a pessoa que se acredita médium, revele atitudes e palavras que não lhes são próprias, mas que sem dúvida foram de seus antepassados. Daí a pessoa falar uma língua que não domina, tocar um instrumento musical ou aptidão para falar em público ou ter ousadia no comportamento.

Um homem que estava na mesa ao lado aproximou-se e disse – não pude deixar de ouvir a conversa de vocês. Embora não concorde, achei muito interessante o seu ponto de vista e gostaria de saber o que você acha de Jesus?

Pensei ser um desses fanáticos que iria se meter na nossa conversa para estragar o papo. E foi com receio de proferir uma ofensa, vez que os religiosos são suscetíveis que disse.

- Não existe nenhuma prova irrefutável de que Jesus tenha realmente existido. Não há nenhum registro no senado romano sobre a execução de um condenado por crime político durante a páscoa judaica no décimo sétimo ano do reinado de Tibério Cesar, nenhuma correspondência do governador da baixa Galiléia, Poncio Pilatus, para os outros governadores dando conta da atuação de um pregador revolucionário, nem há vestígios de um José da tribo de Davi, (pai de Salomão), no censo feito por Herodes “o grande” na cidade de Belém na Judéia. Talvez Jesus seja a personificação do arquétipo de um código de conduta onde as idéias de vários autores foram reunidas num só nome. Talvez tenha acontecido o mesmo fenômeno que dizem ter acontecido com William Shakespeare, o homem que surgiu do nada e foi para canto nenhum, mas que deixou uma obra vastíssima retratando de forma magistral, o comportamento humano. Teria realmente ele existido? Ou são diversos autores usando o mesmo pseudônimo?

- Mas a bíblia sagrada, no seu novo testamento...

- Meu amigo (atalhei), que outros livros dão suporte ao que a bíblia fala? A bíblia apesar de ser um código de ética para a convivência em sociedade foi descaradamente manipulada pelos poderosos através do tempo. Exemplo disso é Constantino ter transformado o império romano na igreja católica apostólica romana (a instituição humana mais antiga em funcionamento) e ter adotado a bíblia como livro sagrado.

- Mas os evangelhos...

- Só constam da bíblia os que foram convenientemente escrito pelos quatro apóstolos, presos na ilha grega de Pátmos, de forma a dar suporte às idéias de Constantino. Por que não consideram os apócrifos?

E para descartar aquele intruso, disse a meus companheiros de mesa. Quanto aos deuses, esses morrem quando deixamos de acreditar neles para desespero dos religiosos e outros espertos que vivem à custa dos fies (misto de ingenuidade com preguiça mental), da mesma forma que morreram as assombrações, lobisomens, mulas sem cabeça e almas penadas pelo advento da luz elétrica.

Não se iluda meu caro Leon, de tudo isso que já foi escrito a única coisa realmente válida está em gênesis, três, dezenove. Moisés foi o “cara” quando esclareceu o que realmente nós somos. Apenas um aglomerado de minerais. Pó, apenas pó, nada mais.