RESSACA DE TATU
CENA 01
Hotel de altíssimo luxo em Salvador, três andares, incrustado num coqueiral na Ilha de Itaparica. Mar de um azul infinito a se perder de vista. Portas com abertura automática. Cartões eletrônicos com senhas para entrada nos quartos e suítes. Computadores por toda parte. Elevadores panorâmicos - vidro fumê blindado. Auditório para 1000 pessoas, teatro e cinema para 500. Campo de golfe, futebol, quadra de peteca, piscina olímpica. Outra piscina de 60m2 para crianças. Piscinas de água doce, em formato de S. Praias particulares em toda área do hotel. Praia privê de nudismo. Saunas masculina, feminina, mista. Heliporto. Caixas Eletrônicos até de bancos internacionais. Mini-clínica. SPA. Um batalhão de seguranças, massagistas, esteticistas e fisioterapeutas. Cinco ortopedistas. Um clínico geral. Uma equipe de pessoal fluente em mais de três idiomas. Quadra de areia medicinal preta: 1000m2, ladeada por margaridas brancas, formando um contraste de cores. Uma floresta de hibiscos de cores diversas. Quiosque japonês. Piscina de água salgada exclusivamente para mergulhadores, formato de tubo, com vista subaquática para o mar.
CENA 02
Um congresso internacional sendo realizado no hotel. Presença da imprensa do mundo inteiro. À beira de uma piscina, duas amigas em conferência num notebook. Um bêbado, barrigudo, moreno-escuro, trajando somente uma toalha enrolada no corpo. E apoiado entre o ombro e a cabeça de cabelos crespos e grisalhos, um som ligado no último volume. Na mão direita, uma latinha de cerveja. E dançando, ele repete o tempo todo, mais alto que a música.
- Eu tô é muitio doidio! Eu tô doidião!
- Tatu, baixa a som, querido! – grita uma mulher magra de cabelos castanhos, usando uma canga africana amarrada no pescoço e excesso de jóias. Envolvida com duas crianças, não encara para o marido ao fazer o pedido.
Perto dela, as duas amigas ocupam uma mesinha de praia, bastante concentradas no trabalho. Uma loura esguia, tipo nórdico, cabelos curtíssimos, vestida como se fosse para um coquetel. A outra, uma freira, manto azul escuro. Por estar completamente coberta, não se percebe quase nada de sua fisionomia. Apenas pelo rosto sardento e olhos castanhos-mel, presume-se que seja ruiva. Curiosamente, a freire exibe lábios bem delineados por batom e exala um discreto cheiro de perfume.
A loura esguia, Tâmara, se dirige à mulher, falando com dificuldade o português.
- Pardon madame, a home... que essa home?
- Como?
- Essa home... e aponta para Tatu, enrolado na toalha e dançando.
- É meu marido!
- Marrida... - as duas arregalam os olhos e cochicham.
- Madame, su marrida... music very... - e faz um gesto demonstrando que a música está muito alta.
A esposa de Tatu entendeu o que a loura esguia disse e argumenta.
- Menina, não posso falar nada. Ele tá bebendo desde ontem.
- Nós precisar concentrada. – diz a freira. - Todo lugar, gente sai, ele.... rádio, music ... – faz o gesto novamente, demonstrando o quanto a música está alta.
A esposa de Tatu grita, impaciente.
- Baixa o som, Tatu! Pare de dançar, homem?
Tatu não dá a mínima para a esposa. A loura esguia argumenta.
- In Dina... Dinamarc... poibido. Se toalha cair enton?
- Ele está de sunga. - esclarece a mulher, gesticulando para duas crianças que correm na direção da praia.
- Crianças, voltem aqui! Agora!
Tatu chega mais perto das mulheres, olhando curioso para o notebook.
- Esse álbum de fotografias é dos namorados?
- Senhor, non entende...
Ele aponta para o notebook.
- Isto...
- Oh!... notebook.... nós esta con... conferenciar.
- Esse pessoal aí na tela? Sua família?
As duas, vendo que não conseguem entendê-lo e que seus argumentos não dão resultados, fecham o notebook e mudam de lugar. A freire sai erguendo os olhos e as mãos para o céu, num gesto de impaciência. Instantes depois chega Tatu, com o som, dançando e gritando.
- Eu tô é muitio doidio. Eu tô doidião!
CENA 03
Surge um funcionário do hotel, um quarentão bronzeado, trajando um terno italiano azul-marinho e falando ao microfone. Os hóspedes se aproximaram. O funcionário traz consigo um intérprete, um rapaz negro e alto, de uniforme, o qual vai traduzindo simultaneamente o inglês.
- Pedimos aos senhores que não usem a piscina para mergulhadores, aquela que forma a enseada ali adiante. – aponta, exibindo a mão direita onde um anel de muitos quilates que brilha na luz do sol. - Recebemos um aviso da Marinha. O mar está em ressaca.
Ouvindo isto, Tatu pára de dançar e arregala os olhos, gritando.
- Ressaca? Quem falou em ressaca? Quem? Eu mal comecei a beber!
E avança cambaleando na direção do homem impecavelmente vestido, que se esquiva agilmente, tentando evitar a colisão. Ao fazer isto, o fio do microfone se ergue do chão. A perna de Tatu se enrosca no fio e ele cai. Contudo, levanta-se mais rápido do que caiu. Ao se levantar, apoia a mão no chão, no que prende a toalha. Por um instante, a surpresa pára tudo. Em seguida, as pessoas que aglomeraram em volta do mensageiro do hotel, explodem em sonoras risadas. Tatu, no meio da multidão, barrigudo, barriga em forma de pêra, ri também. Ri sem saber do quê, dançando desajeitadamente.
- Eu tô é muitio doidio. Eu tô doidião!
A esposa sai correndo na sua direção, colocando as mãos em volta do seu quadril, tentando cobri-lo.
- Tatu, deixei sua sunga em cima da cama. A vermelha. Você vestiu minha...
O riso, que havia cessado enquanto ela tentava contornar a situação, explode novamente, incontrolável.
Tatu se desvencilha da esposa e sai correndo, tropeçando. Faz uma pirueta em volta de um coqueiro e retorna. Olha sério para o grupo de pessoas à sua frente e depois cai na risada novamente, dizendo:
- Eu tô é muitio doidio! Eu tô doidião!
CENA 04 (fim?)
Gargalhadas!
Tâmara e a freira ainda não conseguiram se controlar de tanto ir. E apontando para Tatu, entre gargalhadas, a loura nórdica berra, formando um cone com as duas mãos:
- Olha lá... era só o que faltava! Um homem de calcinha! Calcinha cor-de-rosa!
E dirigindo-se à freira, ordena, agitando as mãos.
- Gesuína, pegue a digital. Vamos gravar a cena! Gravar e jogar na rede. Isso dá dinheiro, minha nega!
- Ochênti! É pra já, mulé!
Diz a freire com sotaque baiano e vai enfiando a mão no bolso do hábito, quando sente olhares cravados nelas. Todos se voltaram para as duas. Há surpresa e incredulidade nas fisionomias. Ninguém conseguiu entender aquele português que até há poucos instantes saía de suas bocas tão atropelado, tão carregado de sotaque francês, saia agora tão correto, tão claro.