Penélope, nem tão charmosa.

Ficou mais ou menos cinco minutos olhando para o display do celular novo, ele não tocou nesse intervalo, pegou a escova de dentes e caminhou para o banheiro, se olhou no espelho, as espinhas saltavam aqui e acolá em seu rosto, pequenos pontos avermelhados, pequenos vulcões prestes a entrar em erupicão, ela sorriu, gostava de suas espinhas, de suas erupicões cutaneas silenciosas e infaliveis.

Sentiu frio, fechou as janelas, se jogou na cama e se encolheu debaixo dos cobertores, ficou nessa posicão por pelo menos meia hora, até que o telefone tocou.

- Alô?

- Oi Penélope. Você já está pronta? Passo ai daqui a alguns minutos.

- Ainda não, estou esperando.

Se vestiu, rápida, simples, calça jeans, camiseta branca, tênis, amarrou o cadarço, e ficou olhando pela janela, através do vidro. Ouviu a buzina. A mãe estava sentada na frente da Tv, como sempre, novela, filme, programa de autitório, ou outras bobagens quaisquer.

- Xau mãe.

A mãe não respondeu, estava compenetrada demais, cena de beijo, Penélope respirou fundo, deixou os ombros cairem, abriu a porta e saiu.

Carol, Ana Carolina, estava encostada no capô do Ford, jaqueta jeans, botas, batom marrom, cigarro aceso, sorriu. – Vamos lá! - Penelope, sentou-se no banco do carona e travou o cinto de segurança. Carol engatou a marcha e saiu.

Penélope havia lido em algum lugar que 70% dos homens beijavam com os olhos abertos, era isso mesmo que estava vendo, dos vários casais que se beijavam na festa os homens estavam todos de olhos abertos. Penélope pegou o copo, não gostou do gosto, ficou tonta, as luzes piscando aumentavam a sensacão de torpor, o ambiente carregado de tanta fumaça de cigarro fazia seus olhos arderem, mas ninguém mais ao redor parecia sentir isso.

Carol tem fumado muito, Penélope experimentou uma vez, engasgou, tossiu, engasgou de novo e tossiu mais uma meia dúzia de vezes, então desistiu. Foi curtíssima sua vida de fumante, alguns minutos entre engasgadas e tossidas e só, nem mais uma vírgula ou ponto para contar a história.

O pai fumava, um dia saiu para comprar cigarro e até hoje não voltou. Pareceu até que a mãe não se importou, deu com os ombros, quando se deu conta, e voltou para frente da TV, mas mesmo assim até hoje resmunga quando passa comercial de cigarro.

A mãe simplesmente parece habitar um outro universo qualquer, que não esse. Penélope não entende, não sabe o que passa pela cabeça da mãe, não sabe se é feliz, o que pensa, o que deixa de pensar, o que sente, o que deixa de sentir, sempre naquela poltrona, estática, hipnotizada pela programação, distante, ausente como um robô.

O gosto da bebida ainda está na boca.

- Uma água tônica, please! – Pede para o rapaz de gravata por detraz do balcão.

Toma em goles pequenos. Olha ao redor. O que realmente está fazendo ali? Ela não sabe. Nenhuma resposta lhe ocorre. Qual a diferença, realmente, entre estar ali ou na frente da TV como a mãe? Ela também não sabe. Outra vez nada lhe ocorre, nenhuma justificativa. Perguntas, ela tem tantas. “Eu tenho mais de vinte anos e mais de mil perguntas sem resposta!” Resmunga para si mesma a letra da canção.

Por quê veio com Carol? Aliás, onde está Carol? Está em um canto mal iluminado, conversando com um rapaz de cabelos compridos, pretos e lisos. Ambos fumam do mesmo cigarro, uma tragada cada um, parece ensaiado. Meu nome é Ana Carolina, mas me chame de Carol. Se me chamar de Ana Carolina eu tomarei como uma ofença. Foi isso que ela havia dito no primeiro dia de aula, na faculdade. Ah, a faculdade. O vestibular. Penélope suava frio no exame de admissão. Grande bosta. Resmunga agora. Toma o resto da água tônica.

Penélope sente vontade de sair dali, sair correndo, voando, nadando, não sabe direito. Vontade de puxar Carol pelo braço e ir embora. Mas onde está Carol? Sumiu. O rapaz de cabelos longos sumiu. Devem ter sumido juntos, imagina. Compra outra água tônica e sai para a rua. A brisa fria faz com que os minúsculos pêlos de seus braços fiquem completamente arrepiados. A lua está enorme no céu. A lua é um queijo suiço. Leu isso em algum lugar. Ela gosta de ler, sobretudo poesia. Drummond. Vinicius. Verlaine. Rimbaud. Fernando Pessoa. Poema em linha reta. Soneto de Fidelidade... O poeta é um fingidor... De tudo ao meu amor serei atento... poderia estar em casa lendo um bom livro, mas ao contrário disso saiu com Carol. Ah, se arrependimento matasse! Foi deixada para trás, esquecida, trocada por um rapaz de cabelos mais longos que os seus. Ela sorri, acha graça. Caminha devagar. Resolve voltar a pé para casa, afinal, ainda não é tao tarde, ainda há pessoas pelas ruas. Cidade pequena. Mundo pequeno. Ela pensa. A vida é tão pequena! Pensa ainda. “A vida é feita de pequenos nadas que a gente saborei e não dá valor. Escutou no rádio um rap que dizia isso. Penélope cruza os braços e vai caminhado para casa.

Penélope já pensou em ser escritora, uma vez até mesmo escreveu um poema e deixou no profile do Orkut, as pessoas elogiaram, mas ela achou que faltava alguma coisa, um pedaço, um verso, não sabia bem o que era. Durante algum tempo se perguntou que coisa era essa que estava faltando, mas não teve sucesso em sua busca por respostas e então desistiu, editou o profile e apagou o poema.

Era um poema sobre as asas de uma mariposa, que ficava grudada em uma teia de aranha. Onde já se viu poema sobre tal coisa, idéia mais sem pé e nem cabeça, os poemas geralmente falam de amor, paixão, volúpia, dor, e não sobre mariposas e aranhas. Quem quer saber sobre essas coisas?

O celular toca, é Carol, Penélope então se lembra da noite anterior.

- Oi. - Diz no telefone.

- Penélope, sua louca, fiquei te procurando ontem por toda a boate. Por quê não me avissou que ia embora? Blá, blá, blá, blá...

Carol quer sair novamente essa noite, diz. Penélope não está com vontade. Prefere passar a noite lendo, diz para a amiga. Silêncio. Ela vai para a cama. Fica olhando para o teto. O ventilador girando, com passos freneticamente descadenciados, em uma dança solitária e sem sentido algum. Pensa na mariposa grudada na teia da aranha.

Olha para a estante, os CD’s, os livros, as revistas, os objetos, coisas, recordações, lembranças de épocas distantes e distintas, ou de época alguma, o relógio, o abajur, a ampulheta com a areia toda no recipiente de baixo, o tempo estático, desmentindo o balé dos ponteiros do relógio.

Ela fecha os olhos, mas não deixa de pensar na aranha sugando a seiva da mariposa.

Ela se olha no espelho, quase uma duzia de espinhas, amarelinhas, sente gana de explodi-las, mas dizem que se fazer isso seu rosto ficará marcado para sempre. Não acreditava. Mas melhor não arriscar.

A mãe continua sentada na frente da TV. Hipnotizada, escrava da programação. Penélope coloca o leite para ferver, joga chocolate dentro, toma olhando para a mãe.

- Mãe, quer chocolate?

- Não filha, obrigada, depois eu tomo um gole.

Sempre depois, pensa Penélope, pensa apenas, não diz nada, respira fundo, toma o chocolate. A mãe sempre deixando tudo para depois, talvez por isso o pai tenha ido embora e nunca mais tenha dado notícias.

Ela já quase não se lembra de como era o rosto do pai. Sabe que ele tinha bigode. Não há fotos dele na casa. A mãe nunca tirou. Sempre deixou para depois, o pai foi embora, saiu para comprar cigarro e nunca mais voltou.

Pensa se não é realmente bom estourar as espinhas. Resolve espreme-las. Volta para a frente do espelho e espreme uma por uma. O rosto fica ardendo. Passa um creme. Escova os dentes. Usou aparelho ortodôntico anos, mas os dentes não ficaram tão bons quanto o dentista havia prometido.

Os cabelos estão embaraçados, ela passa a escova, queria que os cabelos fossem lisos, fáceis de pentear, e não como eram, encaracolados e difíceis de escovar, quase nada é, de fato, como ela queria que fosse. Tem andado desanimada, sem saber o que realmente quer da vida. Liga o rádio, Welcome To The Jungle, muda de estacão, propaganda de Super Mercado, desliga, volta a ligar, mais propaganda, dessa vez de uma loja de conveniências qualquer. Tédio. A vida anda sem graça. Começa a ler um livro, o primeiro que encontra, mas não consegue se concentrar, desiste, larga o livro sobre a cama. Fecha os olhos. No escuro tudo o que consegue pensar é na tal aranha sugando a a mariposa. Maldita hora em que escreveu aquele poema.

Outro dia desses falou para Carol o que estava sentindo, o tédio, o desânimo, a apátia, o vazio inexplicavel dentro do peito. A amiga disse apenas.

- Falta de homem, arruma um namorado, boba!

Carol realmente não entendia bulhufas de coisa nenhuma, pensou, tão hipnotizada quando a mãe na frente da Tv, mas essa outra não está na frente da Tv, está com o nariz dentro do mundo, um mundo tão vazio quando a programação da Tv da mãe, mundinho espremido entre uma insignificancia qualquer e outra. Isso, definitivamente, estava cansando Penélope.

Ela pensa no pai, tenta se lembrar de algum outro detalhe além do bigode. Terá ainda bigode? Ela acha bigode uma coisa tão cafona, retrô, o cúmulo do démodè, mas fazer o que, tem gente que não tem noção do ridículo, sorri com esse pensamento, mas não consegue se lembrar do rosto do pai, tudo que ele é dentro de sua memória é um enorme e escuro bigode, relusente, manchado de nicotina, nojento, vai ficando cada vez maior, vai se aproximando dela, de repente a baixo do bigode uma boca enorme, os dentes amarelados pelo cigarro, Penélope está gelada, aquela boca enorme vem em sua direção, pronta para devora-la, ela quer gritar, mas a voz não sai, não consegue se mexer, quer correr, mas as pernas estão imóveis, pesadas feito chumbo.

Ela acorda com o celular tocando. É Carol, resolve que dessa vez não vai atender. Não há razao para atender. Se vira para o lado e fecha novamente os olhos. O som do telefone vai ficando cada fez mais distante. Tudo vai desaparecendo.

Penélope dorme, tão silenciosa e hipnotizada quanto a mãe na frente da Tv.

Dracena, 07 de junho de 2009.

Odair J Alves
Enviado por Odair J Alves em 08/06/2009
Código do texto: T1638248
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