O CUME DA IGNORÂNCIA
O CUME DA IGNORÂNCIA
Maria, doméstica por vocação, entendedora nata de produtos de limpeza, sabia como ninguém lavar banheiro; esfregava o chão com tanto empenho que parecia uma sessão de descarrego da qual se livrava de suas aspirações e frustrações reprimidas, mesmo assim não obtinha êxito. Este permanecia opaco, embaçado.
Certo dia, enquanto a patroa ausentava-se trajando um belo vestido de seda da última coleção de Paris, meticulosamente combinado a um sapato alto Luís XV demonstrando toda sua vaidade e sensação de poder, Maria corria ao seu quarto pegava o pó de arroz sobre a pe nteadeira e besuntava seu rosto envelhecido e rugoso, na boca passava um belo batom vermelho cintilante que magicamente perdia sua vitalidade e encanto, tudo em Maria parecia não prestar, sua aparência era como chagas, não se podiam disfarçar, num gesto de suplício tentava amenizar copiando identidades.
Maria adorava passear, pegava seus proventos, realizava o pagamento das contas e o resto utilizava para comprar roupas de marcas de grife de um fornecedor paraguaio. Há 25 anos viúva nunca deixara nada atrasar, orgulhava-se de sua lisura e nome impecável no que se refere ao cumprimento de suas obrigações financeiras.
Em sua casa, nos finais de semana, passava maior parte do tempo fazendo o que melhor sabia fazer, limpar. Já estava acostumada com o odor fétido de banheiro, dispensava até o uso de luvas para enfiar as mãos dentre as águas da privada encardida, quando não, provocava uma leve cefaléia imediatamente resolvida com uma dose de café forte comprado na promoção no domingo, instalara a televisão na cozinha para que pudesse interar-se nos fatos limpando sua casa construída num terreno cedido pela prefeitura, com risco de desmoronamento.
Quando visitava o camelô, sentia-se uma estrela.
- Moço, me dê àqueles óculos escuros para eu provar.
Pensava que havia sido projetado pensando em você, pelos comentários que fazia, no fundo sempre soube que sua aparência asquerosa não podia atrair olhares de admiração, apenas um personagem inseguro e barato, carente de atenção.
Ao adentrar a favela que morava, foi inesperadamente abordada pela vizinha que trazia uma triste notícia, seu vizinho havia falecido. Há quarenta anos refletia sobre a vida e reduzia sua existência a uma cadeira de balanço herdada do avô, ao acordar a dispunha prontamente na calçada e ficava a observar o movimento praticamente estático da rua, avistava a dinâmica dos acontecimentos, sua percepção limitada decorrente do Alzheimer o subsistia, apenas levava sua cadeira de balanço como um TOC, um hábito irredutivelmente condicionado pela repetição.
Maria, imediatamente corre a sua casa e prepara a roupa que iria usar no velório, tinha de estar impecável, sempre sonhou em usar algumas palavras que aprendera no sepulcro de um artista famoso de TV.
-Minhas Condolências!
Estava no auge da ignorância, acreditava ser a pessoa mais inteligente do funeral. Despedia-se usando um lenço encontrado na rua balançando como nos filmes de romance obsoletos.
Certo dia, enquanto retornava à sua casa, sentada no encosto rígido do banco, portando um livro, um Best seller, parecia impetrada na leitura, ao menos esta era sua intenção, analfabeta, não sabia o ritmo de uma leitura, trocava de páginas abruptamente, em segundos; deliciava-se ao ser observada, cruzava as pernas, fazia cara de intelectual e passeava pelas páginas do livro e nada via além de códigos indecifráveis pelo seu intelecto.Com as mãos cheias de calosidades, semblante demonstrando sempre ser o último dia de sua vida parece ter-se confirmado, encostada no banco começou a empalidecer, a gemer, alguém ajude, gritou a passageira ao lado. Agora não havia outro cenário além de sua agonia explicita, gemendo, sofrendo, começou a sorrir. Num gesto de vaidade excessiva, próxima ao ápice do orgasmo da satisfação insana, sorri mais uma vez, enquanto sua platéia vibrava ansiosamente pelo seu fim, soltava seu último suspiro de glória:
-Eu consegui!