MEIA VOLTA

Parei o carro na porta da casa amarela, pintura desbotada pelo tempo, quase sem cor, amarelo desbotado. Portão branco amarrado com goma de bicicleta. Na ponta, um anzol, servindo de cadeado, terminava o serviço.

Bem no meio do quarteirão, não tem erro. Eu lembrava sempre. E não teve mesmo.

Nada se alterou. Será que o tempo parou por aqui? A chaminé soltava uma fina baforada de fumava... Deve ser o pão de queijo assando no fogão à lenha, ou é o famoso mané-pelado.

A saudade da tia era enorme, trinta anos se dissiparam rápido à minha frente. Parecia que eu estava chegando agora com a féria da baciada de hortaliça, de almôndega ou dos gostosos pães de queijo que eu vendia para ela.

Recebia minha porcentagem, corria para o bar do seu Duduca e me lambuzava de balas e picolés.

Parece que foi ontem.

Abri o portão e entrei sem bater, deixando para tráz tantos anos de saudade. A alegria que eu sentia de estar de novo aqui era a mesma e única, não lembrei de ter estado feliz assim desde que daqui saí.

Terminava a espera de voltar à minha terra natal. Voltar rico, vencedor, mostrar pra todo mundo o sucesso que tive na cidade grande.

Três toques na porta tosca e o grito veio lá de dentro: - entre, está só encostada.

Empurrei devagar, vendo tudo igual, as paredes cheias de fotografias em quadros antigos, a mesa grande e lustrosa, a máquina preta de costura, tudo igual. Neste vasto tempo, nada mudara, e o significado de tanta emoção, o que é isto? Deve ser a falta que senti deste lugar. Queria não ter me afastado daqui nem um só dia.

Será que ainda tem galinha chocando no canto da cozinha? Como vai estar a tia?

Embebedado de lembranças reparei que a casa continuava sem forro, e o madeiramento era o mesmo, as telhas também. Que boniteza a casa da tia. Onde eu andava garimpando não tinha tanta riqueza, tamanha beleza, beleza de singelo brilho. A botija de barro com água fria no mesmo canto, em cima da velha cantoneira, as mesmas janelas de duas folhas; uma, semiaberta, jogava o foco de iluminada luz, que projetava na parede imagens da minha infância alegre, boa, e vi com outras retinas o quanto estive sozinho.

- Vamos, entre, estou cá na cozinha - gritou lá de dentro minha tia.

Será que tia está muito velha? A nitidez de minhas lembranças me assustava, o assoalho de tábuas brilhava de limpo. Com certeza, estive morto. Escritório, casa, trabalho, trabalho, elevador, corredor, crédito, carro... Corro instintivamente os olhos arregalados, redescobrindo minúcias que deixer de ver, nesta ausência. Busco o cheiro das coisas que eu tanto gostava. Estrangeiro débil.

Ouvia um cachorro latindo longe e o estribo de prata do vô permanecia estático, dependurado no mesmo lugar. O tapete de retalhos... Será o mesmo? O caminho percorrido até chegar aqui, agora, rico, foi sem cor, sem perfume, entristecido, mas a tia vai ficar feliz, o terno, o carro, os imóveis...

As almofadas na banqueta!

Busquei uma que tinha mancha do meu sangue. A tia fizera curativo quando o balanço caiu na minha cabeça; a velha almofada estava lá, esperando por mim, apertei-a no peito devagar, o pano estava muito puído, cheiro de sabão de bola, será que ela ainda faz?

- Quem tá aí? Se aquete que eu já tou indo.

Nenhuma notícia. Trinta anos de ausência e nenhum recado, ânsia de ficar rico, cadafalso, febre, dor, não fiz mais do que morrer, de delírios, de saudade e descubro agora que toda riqueza que eu procurava estava aqui, tão perto, e eu tão longe.

É real o voo sem asas, estou nas grimpas da mangueira, e vejo lá de cima a tia me procurando para tomar banho, chamando para comer... E nenhuma carta, nenhum bilhete, nenhum telefonema, mas sei que ela ficará muito contente de ver que eu venci na vida.

Tenho tanta dó de mim, e sou grato pela casa da tia, único prazer verdadeiro.

Meu prazer era o relógio, era olhar as horas, precisava delas para conquistar o universo.

A tia achava isto de hora, de correria, uma bobagem. "O mais importante é não fechar seu coração, não embobar por coisas bobas", aconselhava ela.

Estou curioso para ver seu rosto, será que está muito velha?

Escutava a tia arrastando seus chinelos, deve estar do mesmo jeito, não pára um minuto de mexer na cozinha, tudo que ela faz fica gostoso, tem mãos mágicas.

Está tudo tão certinho, não sei onde a tia vai empregar o dinheiro que eu lhe trouxe.

Pasmado, perturbo-me com meu erro. Fecho os olhos e lembro do cavalo Guarani, crina e cabelos ao vento, eu na garupa e a tia soberba, era dona das rédeas.

O sentimento de angústia me tira a voz, a coragem.

Que dó que tenho de mim, que mal me fiz! O celular vibra no bolso, meu deus, ela não pode ouvir, saio rápido desligando o inconveniente aparelho.

Será que ela sonhou comigo? Teve as mesmas saudades que eu tive? Tudo está tão bem.

Foi indiferente a minha ausência?

Ela está muito bem, tudo está muito bem, ninguém sentiu nem sente a minha falta. Depois deste tempo todo, ela nem veio me receber, não me esperava, deve pensar que morri.

Trêmulo, parto novamente.

Ligo o carro e saio devagar, parece que ouço a tia dizendo: - Já vou.

Vou criar coragem pra voltar, pra ver seu rosto, prepararei uma volta triunfal.

Vou escrever antes, perguntar o presente que ela quer ganhar, contar a saudade que eu sinto e lhe dizer que nunca fui feliz longe dela.

ivanor florêncio
Enviado por ivanor florêncio em 04/06/2009
Código do texto: T1632222