ERA UMA VEZ

Era uma vez...

E tudo começa assim!

Era uma vez...

...

A primeira história que ouvi, antes de adormecer, e lá se vão anos e anos, foi contada por minha tia. Desejando auxiliar-me a fechar meus olhinhos de criança, ao lado de minha cama, alisava os meus cabelos.

Outras histórias saíram de seus lábios e sempre começavam assim mesmo:

Era uma vez...

...

Eu não sentia o momento em que adormecia, como um anjinho, sem a mínima preocupação. O dia todo eu brincava, corria, aprontava cada uma! Era tudo coisa de criança peralta.

Sim, eu era peralta, dava muito trabalho, conforme todos diziam. Ninguém me defendia, afirmando: “não, ele não é peralta... não, não foi ele...” Mas sempre tive a certeza: nunca magoei ninguém, pois eu nunca adormecera intranqüilo!

Não, não posso ser ingrato!

Às vezes, diante de alguma peraltice, quando todos me repreendiam, e até mesmo quando algumas palmadas eu levava no bumbum, graças ao chinelo de mamãe que contribuía e muito para esquentá-lo, surgia uma fada ou um anjo, exclamando:

– “Deixe isso pra lá! São coisas de criança!”

Aquela voz se misturava com o meu chorinho e eu bem que agradecia aquela presença santa a meu favor. Por dentro, sentia um apoio inesperado e controlador. Via com o rabinho do olho a fada ou o santo se afastar juntamente com os demais. E aí é que eu sentia mesmo alívio.

Porém, sobrava o soluço. Por mais que eu quisesse, não parava. Quando parava, meu rosto também já estava seco. As lágrimas tinham secado e, sorrateiramente, lá ia eu, quietinho e bonzinho, mas com muita vontade de voltar para junto dos meus amiguinhos.

Algumas vezes, eu voltava mesmo.

Por incrível que pareça, a lição não havia sido bem dada porque, num relance, eu já estava envolvido em outra traquinagem...

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No final do túnel do tempo, num passado muito distante, surgem as primeiras lembranças:

– “Olhe para mim. Eu me chamo Lili...”

Foi o primeiro livro que li após o “bê-a-bá”, a cartilha de somar, diminuir, dividir e multiplicar.

Meu pai, severo e bondoso, marcava as lições. E eu ficava a repetir, para nunca mais esquecer: “um mais é igual a dois, um vezes um é igual a um, dois dividido por um é igual a dois e um vezes três é igual a três...”

Sim, meu primeiro livro, “Lili”, que gostava de doce, ensinou-me a penetrar, em silêncio, cada vez mais, no hábito da leitura. Aquele livro ajudou a alfabetizar muitas gerações de mineiros, inclusive, como disse, eu mesmo. Lógico, sob o olhar severo de meu pai.

A autora do livro faleceu após noventa e seis anos de vida exemplar, ainda bastante lúcida. Seu nome: Anita Fonseca.

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Bem, tirando o livro de Lili, havia um outro que eu gostava muito e cujo nome me foge da memória agora. Salvo engano, era “As mais belas histórias”. Fascinava-me a história do cão Plutão. Quase sempre quando eu o relia, as lágrimas surgiam.

As revistas em quadrinhos me fascinavam. Não foram autores clássicos ou de renome os responsáveis pelo meu lado criativo, mas sim os famosos “gibis” que nossos pais proibiam. Sua leitura era feita às escondidas. Normalmente, o esconderijo para eles, quando não estávamos lendo atrás de uma porta ou escondidos na horta, era debaixo da cama.

Embora alguns deles fossem escritos por pessoas famosas e publicados em livros, eram os gibis que me atraíam. Tarzan, sua amada Jane e o macaquinho de estimação, Flash Gordon, Ivanhoé, Vinte mil léguas submarinas, o Fantasma e seu cão de estimação Capeto, a história de Robinson Crusoé e, completando, entre outros mais, os gibis de faroeste.

Eu os lia, relia e lia novamente...

O estudo regular, da escola, ficava sempre para depois. Ao final, o boletim vinha arrasador.

Então, não dava outra. Meu pai pegando no meu pé para valer.

Mas os gibis continuaram fazendo parte de minha vida.

O tempo ia passando, e os boletins sempre com notas baixas. Até que, beirando o fim do ano, eu entrava em ação com minha “decoreba”, ou seja, não aprendia. Decorava muito. Até as vírgulas e os pontos. Só para passar de ano.

Nunca me saiu da cabeça um pensamento: por que não ensinavam utilizando o método através de gibis? Tudo o que eu li nos gibis aprendi e até hoje utilizo como experiência de vida.

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Passei minha infância e juventude frustrado. Todos aconselhavam:

– “Vá até a biblioteca e leia bons livros. Assim você aprenderá muito.”

Mas lá, na biblioteca, não encontraria os meus favoritos, os gibis, mas sim colegas que, como eu, devoravam os gibis com os olhos e, também, escondidos dos pais.

Hoje, sei que Júlio Verne foi um grande cientista contemporâneo que escreveu livros com teorias de máquinas para o futuro. Mas nunca li um livro escrito por ele. No entanto, devorei “Vinte mil léguas submarinas” em revista de quadrinhos...

Tenho tido pequenas crises do tipo “existencial”, conforme muitos dizem, nessa altura de minha vida. Coisas parecidas com: de onde vim, para onde vou e outras mais.

Em minha infância, juventude e até mesmo pouco tempo atrás, eu não pensava em tais inquirições.

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Sentei-me para escrever.

Papel na máquina.

Fico olhando e pensando. Meus argumentos desaparecerem.

Levanto e não vou escrever mais. Vou fazer outra coisa qualquer. Não sei bem o quê.

De repente, não.

Acho que vou escrever.

Volto e dedilho coisas na máquina. Adoro escrever quando as idéias vão surgindo seguidamente.

Detesto quando sento para escrever e fico parado, pensando... E nada sai. Fico olhando para os meus oito dedos parados nas teclas da máquina tentando provocar algum texto interessante e chegar naquele ponto que gosto: escrever seguidamente crônicas, contos ou histórias interessantes, gostosas, daquele tipo que o leitor começa a ler e só pára no final. Assim como eu, quando gosto da leitura, vou até o fim. Mas quando o assunto fica meio chato, paro...

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No momento em que escrevo, embora o dicionário, o Aurélio, isso mesmo, ao lado da máquina, à disposição para consultas, nem ao menos o abro. Depois, quem sabe! Vou verificando palavras quando percebo ou sinto que errei.

Ultimamente, tenho ficado omisso em relação aos meus familiares. Dedico pouco tempo a eles e estou me envolvendo cada vez mais na leitura e na escrita. Pouco tempo para eles?

Aliás, durante toda a minha vida, trabalhei muito. Poucas foram as horas em que estive ao lado deles. Raras vezes, com tranqüilidade, conversei com eles, num bate-papo agradável, mostrando-lhes, através da vivência e de exemplos, as armadilhas que a vida nos coloca. Ou mesmo sobre assuntos do dia-a-dia, gostosamente, rindo até de algumas passagens.

Fui omisso nessa questão. E também, durante todo o aprendizado escolar, pouco tempo lhes dediquei, participando de suas dificuldades.

Não sei como fazer agora.

Lembro-me da maneira de agir de outros pais. Sinto que fui egoísta e não sei como agir. Vou procurar dar mais atenção a cada um deles. Será que vou conseguir?

Os dias “passam tão rápidos”! Os dias “passam rápidos” ou nós é que “passamos muito rápidos” pelo tempo? Existe tempo ou é somente uma convenção nossa para nos posicionarmos aqui no planeta, assim como quando afirmamos Norte, Sul e outras coisas mais? Norte em relação a que no Cosmo, já que o planeta está inserido numa galáxia?

Bem. Deixemos tais questões, pois não temos convicção firme e tampouco o mínimo de conhecimento para argumentar sobre elas. O que interessa é o seguinte: quero me aproximar mais, com amor e dedicação, de minha família e lhes possibilitar um meio de sobrevivência no futuro, quando eu partir...

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Passo meses inerte na cama, levantando-me somente para almoçar, fazer barba e tomar banho. Decidi que não posso continuar desse jeito.

Após o acidente da minha filha Simone, resolvi enfrentar o dia-a-dia, mesmo sentindo dores. Confesso que meu estado físico piorou um pouco. Entretanto, estou aprendendo a conviver com a dor e com a limitação em atividades.

Levanto de manhã e tomo um cafezinho, embora meu corpo esteja sempre pedindo por cama. Insisto e saio. Vou caminhar. Fazer pequenas coisas e solucionar o que sempre surge para ser resolvido.

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Não tenho sido bom pai, eu sei. Nem bom esposo. Acho mesmo que nunca serei um bom chefe de família, apesar dos ótimos filhos e esposa que tenho.

A velhice, devagarinho e matreira, vem chegando. Sinto que tenho pouco tempo para resgatar tantos compromissos de ordem familiar, social e profissional acumulados no ponto ideal para afirmar: cumpri minha missão. Estou apto a partir.

Meu maior objetivo é propiciar mais atenção, carinho e felicidade para minha família. Mais amor e menos incompreensão. Mais amor? Sim. Mais amor.

Sempre amei muito, com sinceridade, e a muitas pessoas dediquei atenção. Talvez até mais do que para os meus familiares.

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Lembro-me, mais ou menos, de outra passagem quando disseram ao mestre:

“– ‘Mestre, teus irmãos e irmãs estão esperando.’ Ao que Ele respondeu:

– ‘Mas quem são meus irmãos e minhas irmãs?’”

Já observei em várias ocasiões as pessoas receberem mais amor de amigos do que dos próprios familiares. Almas gêmeas? Círculo familiar de outras vidas? Não sei. Porém, tenho plena convicção: amo minha esposa e meus filhos, embora esteja sempre sendo omisso.

Estive e estou em busca de algo. Não sei o quê! Procuro, a todo instante, preencher um vazio interior. Um anseio que vem de dentro. Talvez a necessidade de escrever expondo idéias, fatos e criando textos com a preocupação de que o leitor vai gostar. Mas, sobretudo, por meu próprio interesse. Porque eu gosto!

Mas não.

Eu escrevo e o vazio permanece.

A cada anoitecer, a cada amanhecer é um anseio de ou por algo desconhecido.

Algum fato que vai acontecer será coisa do destino? Algo relacionado com premonição?

O acidente com minha filha não foi.

O vazio permanece. Anseio por fatos alegres, felizes. É, quem saberá, um vazio espiritual? A ausência de alguma alma gêmea? Não sei exatamente o que é “alma gêmea”. Já ouvi comentários de que se trata de algum ser com as mesmas vibrações de outro.

Esse anseio perdura. Pendurou durante toda a minha vida...

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Fico feliz da vida quando, ao escrever, ouço o gostoso barulho das teclas da máquina. Dedos rápidos, teclas rápidas, num ritmo frenético. O ritmo mais pra lá de samba do que mesmo pra valsa ou bolero. As idéias vão surgindo e sendo registradas, como consigo, nas folhas brancas.

Paro para disciplinar um pouco as idéias.

Tão logo reinicio, naquele mesmo ritmo, rápido e gostoso, os dedos vão dançando no teclado.

Meu Deus, como é gostoso!

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Detesto momentos como até agora há pouco quando procuro, busco as palavras e não as encontro. Adoro quando surgem aos montes formando idéias, pensamentos, frases, entrelaçando-se e formando um todo agradável.

Hoje, por exemplo, passei o dia todo tentando encontrar idéias. Nada.

Ao amanhecer, eu pensei que seria um dia bem produtivo. Porém, nada... Nada surgia!

É um sábado! Os sábados para mim são chatos. São dias em que ficamos à toa na vida. Todos os sábados são preguiçosos. Dias próprios para olhar... Olhar, somente olhar. Divagar sobre alguma coisa sem pé nem cabeça. Ou então relaxar gostosamente, o que está ficando difícil, pois o telefone e a campainha não deixam. É só esticar o corpo no sofá, televisão ligada e bocejar que o telefone, a campainha ou o grito de alguém chamando-nos acabam com a história de relaxamento.

Mas que os sábados são os pais da preguiça, isso lá é verdade!

Pois bem. Os pensamentos não surgem. As palavras sumiram. E nada. Nadinha para fazer...

Bem, vou dar uma volta.

Paro no boteco da esquina. Preguiçosamente, sento-me numa das beiradas da parede interna, um banco de cimento improvisado. Estão consertando um pedaço da rede fluvial. Aparece por perto um pinguço, olha a água jorrando numa das extremidades da rede, já cortada para receber emenda nova, começa a olhar para frente e grita, gesticulando, sob os olhares indignados dos trabalhadores, pois o sábado já havia jogado em cima deles uma boa dose de preguiça:

– “Oi, abaixa a água aí! Oi, abaixa a água aí!”

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Olho para o céu e vejo o Sol radiante, como dono de tudo... Plenamente confiante em seu poder.

Então, surge o pensamento: quantos amanheceres perdi!

Sim, foram muitos amanheceres perdidos.

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Alguns medicamentos que eu usava deixavam-me prostrado quase o dia todo na cama. Levantava para almoçar. Voltava para a cama. Adormecia. Lá pelas três ou quatro horas da tarde, acordava, tomava banho e seguia noite adentro até lá pelas duas da madrugada.

Foram dias muito ruins. Ornados pelo ócio, pela indiferença e pelo desânimo, embora, no íntimo, uma pequena chama indicava que tudo iria passar. Era questão de tempo. Tudo passaria!

Lá fora, no terreiro, a cachorra late. Late? Mais parecem miados de gato. “Essa cachorra está ficando muito manhosa”, pensei.

Entretanto, mudei de vibração e lembrei-me de alguém afirmando que essa raça gosta muito de carinho. Sei que temos dado pouco carinho para ela. Ou, então, ela está ficando muito exigente.

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Levanto-me, dou alguns passos e volto. Sento-me na cadeira, à frente de minha máquina. Não, por enquanto nada de computador aqui!

Levanto-me novamente, olho para a mesa e lá estão livros, papéis esparramados e outros apetrechos mais para quem gosta de escrever. É, não tem jeito! A mesa vai continuar assim mesmo como está. Desarrumada!

Vou parar e descansar.

Descansar? Tenho esse direito? E se eu morrer? E se eu morrer antes de chegar o amanhã?

Bobagem.

Vou parar, descansar e amanhã escreverei mais, já que o meu viver é com objetivo: escrever, escrever. Se alguém vai ler, eu não sei. Sinto como único motivo prosseguir: escrever, escrever sempre!

Não, não é o único motivo! Tenho a esposa e os filhos. Tenho ainda a Mone, que precisa muito de mim. Tenho missões a serem cumpridas, no âmbito da família e da comunidade. Enfim, muito trabalho.

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E a cachorra continuou com seu miado chato. Não sei com quem aprendeu. É mais parecido com choro do que com miado.

– “Ela está nos cio”. Disse-me meu filho.

Por isso, fica desse jeito. Sente falta de um companheiro, assim como também nós sentimos. Seu desejo, na certa, é ser mãe, concluo. Ser mãe...

Enfim, ela tem esse direito sublime. Sublime? Será que as mulheres de hoje consideram, como muitas consideravam em tempos idos, que ser mãe é um fato sublime?

Pausa.

Fui lá fora brincar um pouco com ela. Posso afirmar: ela adorou! Abaixei-me para pegar o brinquedinho dela e jogá-lo lá na frente para ela buscar...

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Ah! Velhice!

A velhice com todos os inconvenientes para o corpo físico. Como dói a coluna! Como doem as pernas e os joelhos quando subo escadas! Até mesmo para caminhadas mais longas já sinto dificuldades. Subir lá pra serra... Como eu gostava! Já não consigo mais.

Não gosto de pensar muito a respeito.

Sempre gostei de andar pelos campos, caminhar por trilhos e pelos leitos de córregos. Deitar despreocupadamente debaixo de alguma árvore em algum lugar por onde eu costumava ir. Sentir o cheiro de terra molhada após uma pancada de chuva.

Caminhar... Caminhar... Caminhar sob o Sol percebendo o suor descer pelo rosto. Sentir o arder nos olhos quando o suor salgado os atinge.

Ao entardecer, com o corpo quente, um pouco cansado, sentar no banco perto da casinha que, com muito custo, consegui fazer em uma pequena propriedade.

Observar o horizonte. Pesquisar todo aquele lado da serra com meus olhos, admirando cada ponto, gravando na memória cada arbusto ao longe, cada trilha...

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Ah! Velhice!

Por que chegas tão sorrateira, batendo bem devagarinho em minha porta existencial, como se estivesse dizendo:

– “Está chegando a hora. Comece a repensar o seu viver. Não avisarei mais. Virei buscá-lo em silêncio...”

Ah! Velhice!

Inimiga de meus mais simples prazeres. O caminhar devagar, subindo a serra, observando e amando a natureza.

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Ah! Velhice!

Por que não ficas bem longe de mim? Por que vens, como nada querendo, e roubas as minhas forças, acumulas-me de dores de cansaço. E, como se não bastasse, como sobremesa, costumas entregar-me o que mais detesto: o desânimo, meu maior inimigo. O desejo de nada mais para fazer.

Mas sou teimoso. Ainda que pouco, vou fazendo sempre alguma coisa, enfrentando o corpo desgastado. Quero seguir. Ir em frente.

E tu, noite após noite, dia após dia, amanhecer após amanhecer, surges com tua sombra maquiavélica. Impuseste-me limites que, em minha infância, juventude e maturidade, não conheci. Agora, apesar da vivência e experiência adquirida ao longo dos anos, forças-me a parar...

Não! Continuo enfrentando tuas imposições. Até quando? Até quando Deus definir um final!

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Não bastasse o tumor no pulmão, as idas e vindas a hospitais, consultórios, clínicas e todo aquele período enfrentando a radioterapia, a desgastante quimioterapia que me tirava todo o apetite, diminuindo meu vigor, minhas forças, meu peso.

Como se não bastasse, ó velhice! Trouxeste-me essa polineuropatia periférica, com a qual convivo vinte e quatro horas todos os dias. Dores, formigamentos, fincadas nas pernas, queimação, desequilíbrio, medo, depressão, remédios e comprimidos de várias cores e tamanhos.

Qualquer dia desses, largarei tudo. Não farei mais nenhum tipo de exame e cortarei todo tipo de consulta. Sim, os consultórios médicos não mais terão a minha presença. Então, já terei aprendido e aceitado todos esses empecilhos. Restará um. Não sei se conseguirei vencê-lo: o sentimento de autoculpa por ainda está desafiando limites... Desafiando limites e continuando com os meus vícios.

O fumo, então, é algo muito atroz. A cada manhã, ao pensar em largar o cigarro, vejo-me acendendo um. É indescritível essa necessidade de nicotina, esse anseio psicológico pelo ato de tragar e soltar a fumaça!

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O cigarro e a máquina de escrever, comigo junto, sempre compuseram o ambiente em que estou a escrever. Algumas linhas horríveis. Outras melhores.

Após o meu tratamento, como já disse, surgiu a polineuropatia periférica. Polineuropatia com muitos inconvenientes.

No momento, sinto dormência nos pés. As pernas pesadas como se em cada uma tivesse um peso de cem quilos! De quando em quando, uma fisgada, como fincada de agulha, e filete de frio perto da fisgada, dando a impressão de sangue gelado após a ruptura de alguma veia.

Nossa!...

Assim também já é demais!

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Ao levantar-me, olhei para o chão, pouco atrás de mim, e vi uma grande quantidade de papéis amassados. São anotações feitas e que, não mais precisando, vou amassando e jogando para trás. Ali, na frente, tem um cesto próprio, mas não consigo alcançá-lo. O jeito é mesmo esse. Amassar e jogar, por perto, por trás. Tocos de cigarro também estão pelo chão, debalde cinzeiros por perto. Mas não me dou ao trabalho de procurá-los. Jogo mesmo no chão. Depois eu limpo. Sim, depois eu limpo.

Mas não faço isso. Hoje mesmo, a empregada, um tanto surpresa, foi logo reclamando:

– “Nossa! Como o escritório tá bagunçado!”

Ao que respondi:

– “É. Tá mesmo...”

Eu já me acostumei... Escrever no meio de tanta confusão já é, para mim, muito normal. “Depois a empregada vai se acostumar também com essa bagunça toda”, pensei. Só não quero que alguém mexa em alguma coisa por aqui.

Lembro-me de um amigo, redator de um pequeno jornal diário, mantido a duras lutas. Diariamente, eu ia lá e escrevia qualquer coisa para colaborar. Num determinado dia, como sua mesa estava tão desarrumada, resolvi dar uma mãozinha. Não deu outra. Quando ele chegou e eu estava aguardando um elogio, fui surpreendido com uma falação danada... Ele não gostou e foi dizendo:

– “Deixe sempre tudo como encontrar. É assim que sei trabalhar. É assim que consigo encontrar as anotações e de tudo o mais que eu precisar. Não mexa!” Concluiu com essa advertência.

E, realmente, nunca mais mexi naquela bagunça e muito menos espanei e varri a pequena redação.

A coisa funcionava bem daquele jeito mesmo. Caso contrário, até hoje, tenho essa impressão: “o barco afundava”.

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Eu sempre gostei de escrever em papel bom, limpinho, novinho. Ajuda-me a raciocinar melhor.

Certa feita, no mesmo jornal, encontrei um bilhetinho para mim, escrito pelo diretor, dizendo que o papel que eu estava usando não poderia usá-lo mais, pois o destino dele era outro.

Fui, pois, proibido de usar o papel que eu gostava e tive que me contentar utilizando um bem inferior, tipo papel jornal de qualidade ruim. Eu colaborava e só recebia recadinhos ou advertências.

Bem. Deixa pra lá, pois a realidade é que sem a minha pessoa naquele, então, pasquim, ficava sempre faltando matéria, e o linotipista ficava esperando para completar a edição, o que só acontecia com a minha chegada, saudada com um largo sorriso dele, doido para ir embora após um dia cansativo e uma espera pior ainda.

– “É ruim a gente depender dos outros.” Sempre dizia.

– “E você, graças a Deus, aparece sempre na hora certa, antes que eu chutasse tudo e fosse embora carregando comigo a minha raiva.” Afirmava ele.

Bons tempos aqueles!... Para mim, para ele e para todos nós que vivíamos sem sermos muito prisioneiros da modernidade, da tecnologia avançada e do excesso de máquinas à nossa disposição.

Com todos os recursos da atualidade, com todo o conforto dos dias atuais, eu gostava mais daqueles tempos. Vivíamos bem e sempre sobrava tempo para passeios, para um bom bocado de prosa, para o footing na avenida.

...

Arre!...

Sempre surge algo para atrapalhar o meu raciocínio. Tenho que parar. É o telefone. Até isso! Tanta gente nesta casa e ninguém disposto a algum esforço. Pelo menos atender o telefone.

É preciso, como diz o povo, ter paciência de Jó. Nem sei quem é esse Jó, mas o povo fala, tá falado! Sei que é personagem da Bíblia, e só.

Engraçado, mas nunca li a Bíblia, como fazem alguns adeptos de certas religiões. Conhecem esse livro sagrado na ponta da língua. Mas será que agem como ensina a Bíblia? Li o Sermão da Montanha, passagens de algum evangelho e de outro, sem nunca ter começado do início e ter ido até o fim. Já li o Livro da Sabedoria e o Eclesiastes. O Antigo, nem pensar! São muitos nomes e cenas um tanto dramáticas para mim. Lutas, guerras, castigos etc. Não leio.

...

Nunca consegui colocar em ordem meu pequeno “escritório”. É um lugar que me permite viajar pelo passado recente ou distante e “matutar” a respeito do futuro.

Sempre, sempre, esparramados pela mesa: livros, papéis datilografados com o início de crônicas, contos, anotações sobre idéias que surgiram. Para não me distanciar delas, eu anotava, resumidamente, em pequenos pedaços de papéis.

Ao lado da mesa, um pouco distante, mais à frente, uma cesta de papéis. Todas as anotações, após relê-las, eu amassava e as jogava nessa cesta. Nunca acertei em cheio! Sempre caíam e depois eu tinha de apanhá-las e colocá-las na cesta. Isto é, de vez em quando. Pois, na maioria das vezes, ficavam pelo chão.

O que mais me irrita é quando vou procurar, no meio de tanta papelada, recortes de livros, algum texto que li e preciso reler ou, então, alguma anotação que considerei importante agora e não encontro. Fico perdido. A mesa, como sempre, fica mais bagunçada com essa mexida em busca do que necessito no momento.

Meu astral fica alto ao escrever e verificar que gostei. Mas, ao contrário, fica lá embaixo se largo tudo parado. Se o papel não estiver na máquina, lápis por perto e tudo mais em meu escritório exatamente como estava, sou capaz, ou melhor, não penso duas vezes e rasgo o que já escrevera.

Não foi uma, porém dezenas e dezenas de vezes que eu entrei em meu escritório e tão rápido saí sentindo arrepios por toda aquela bagunça. Mas esse tipo de bagunça faz parte de minha vida. Eu mesmo sou o responsável.

Em determinados dias, pelo menos em minha mesa, coloco tudo em ordem. Mas, após a primeira vez que vou escrever, começo a bagunçar tudo. Quando dou uma paradinha e olho para a mesa, vejo tudo como estava antes da arrumação. Papéis com notinhas pra todo lado e livros em cima da mesa. E, assim, a vida íntima com o desejo de escrever continua, lamentavelmente, meio desarrumada.

Posso até afirmar que o escritor, assim como o pintor, nunca terão seu escritório e ateliê em boa ordem. A desordem é própria deles. Faz parte de suas vidas, embora a cada dia busquem a perfeição. Por mais esforço e por melhor que sejam seus trabalhos, nunca, nunca mesmo, se dão por satisfeitos em suas tarefas. Vivem agarrados num mundo de criação, em altas nuvens, embora seus pés estejam firmes no chão. São os passageiros desta vida que deixam seus recados escritos ou pintados em telas. Alguns desses trabalhos alcançam os píncaros da glória. Por outro lado, outros esmorecem, esquecidos em algum canto até sumirem totalmente. É que os recados ou as pinturas não conseguiram atingir o objetivo de transmitir experiências ou emoções.

Mas... Pensando bem... Nada é eterno aqui! Uns vêm e outros vão. Todos tentando alcançar a pessoa de um modo ou outro.

Neste momento, observo tudo ao redor e constato: tá tudo bagunçado de novo...

Arre!...

Já tá tudo desarrumado de novo! É bobagem! Não consigo! Não consigo manter minha mesa arrumada! O escritório todo! Nem pensar...

Passei a vida arrumando desarrumando tudo ao redor. Sim, arrumando e desarrumando. Puxa vida! Como pode?

A diferença é que agora fico mais aborrecido por não conseguir manter as coisas em seus devidos lugares. Começo a escrever sobre um assunto e, em determinado momento, paro, tiro a folha da máquina e a coloco em cima da mesa. Quando menos espero, verifico que existem muitos e muitos papéis, com assuntos tão diferentes esparramados, sem ordem, por cima da mesa. De vez em quando, pego numa folha, leio o final e volto a escrever sobre aquilo que havia iniciado.

E assim prossegue, dia a dia, o mesmo sistema. Acho que, ao final, quando me der conta, terei escrito vários livros. Já não sou mais novo. Não troco mais esta desarrumação por uma noitada de uísque ou cerveja ao embalo de uma gostosa canção dedilhada ao violão nalgum boteco, como antes eu gostava.

...

Alguém já comentou e eu também comento: a Cecília Meireles tinha razão. “Eu não tinha esse rosto... Eu não tinha essas mãos... Em que espelho ficou perdida a minha face?”

De repente, balbuciando, bem devagarinho, esses versos de Cecília, sinto-me, embora não queira, em idade avançada É... É a vida. É isso mesmo!

É. É isso mesmo, querida Cecília. Em certa etapa de nosso viver, paramos de repente, como alguém que vendo uma obra de arte, estando debaixo de Sol causticante, apressa-se em amenizar o calor sentando-se sob aquela sobra.

Somos assim.

De repente... Paramos. Olhamos para o espelho. Observamos tudo ao redor e, como que acordando de um sonho tranqüilo, assustamo-nos com a realidade: a infância já dobrou lá no horizonte. A juventude também já era. A maturidade está a meio caminho. E a velhice vem chegando, de mansinho, sem que antes pudéssemos observar. E agora, de repente, tudo ao mesmo tempo.

A imagem no espelho já não é mais aquela. Tudo ao redor sofreu modificações. Parece não termos condições físicas, mentais e psicológicas para aceitarmos tudo que está ao redor. Os rostos são outros. Os que convivíamos com eles, a maioria, já está na nova morada. O corpo físico debaixo de uma lápide.

Releio, nesse instante, a advertência do príncipe dos poetas cearenses, padre Antônio Tomaz, que se encontra em “Contraste”:

“Quando partimos no verdor dos anos

Da vida pela estrada florescente,

As esperanças vão conosco à frente

E vão ficando atrás os enganos.

Rindo e cantando, céleres e ufanos,

Vamos marchando, descuidadosamente.

Eis que chega a velhice, de repente,

Desfazendo ilusões, matando enganos.

Então, enxergamos claramente

Quanto a existência é rápida e falaz.

E vemos que acontece justamente

O contrário dos tempos de rapaz:

Os desenganos vão conosco à frente,

As esperanças vão ficando atrás.”

É Cecília! Você e o padre Antônio nos deram, de presente, de papel passado, a herança que o ser humano recebe chegando ao fim do caminhar.

...

Bem, mudemos de pensamento. Sim, mudemos.

Até parece que vocês dois estão diante de mim e de minha máquina de escrever. Observam cada gesto, cada expressão no meu rosto, ao reler suas verdades verdadeiras.

Mas deixa pra lá! O assunto aqui é a bagunça em minha mesa, em meu escritório. O resto é resto mesmo.

Pensando bem, se tudo estiver bem arrumadinho, cada coisa em seu lugar, um “brinco” o meu local de trabalho, eu me pergunto: “será que conseguiria trabalhar?

São tantos anos arrumando e desarrumando!... E tudo sempre desarrumado! Sim, acho que não conseguiria, de modo algum, produzir algo que me propusesse a fazer. Todos que, de um modo ou outro, estão envolvidos com o que dizem chamar “a arte de escrever”, todos já estão intimamente ligados ao jeito bagunçado, assim como se encontra agora, neste exato momento, minha mesa, meu escritório, meus papéis, manuscritos, minhas coisas, enfim?

Procuro aqui, procuro ali e não encontro. Então desisto.

Num outro dia, sem querer, encontro. Mas não preciso mais. O interesse ou a necessidade já foram a passos largos.

É. Minha sina é continuar assim, no meio da bagunça. Parece até que gosto. Nem sempre, é lógico.

..

A cadela...

Oh! Esqueci de mencionar seu nome. É Samantha!

Bem, a cadela agora já está com outro costume. Quando entro no escritório, ela vem atrás, mexe em alguma coisa pelo chão, deita aqui do lado da mesa e fica cochilando. Dizem que cochilar é bom.

Vez ou outra, durante toda a minha vida, consegui cochilar. Durmo, mesmo sem ser noite, mas não cochilo. Deve ser bom cochilar!

Minha mãe gosta. Outras pessoas gostam. Meu filho caçula gosta. E a Samantha também gosta.

Devem estar com a razão. Deve ser um bom relaxamento. E eu preciso relaxar, mas não sei cochilar. Acho que a gente pára em algum lugar, uma poltrona, numa relva ou mesmo numa cadeira e se entrega totalmente. Aí o cochilo deve chegar.

Eu aqui, batucando nas teclas, distraído, pensando em que escrever, como escrever, buscando sempre um estilo bastante acessível, simples e que seja, ao mesmo tempo, suave e elegante.

A cadela Samantha me faz o favor de derrubar com o focinho o cinzeiro no chão, fazendo barulho e me tirando desse estado em que me encontro, querendo escrever, Escrever, no melhor estilo possível.

Ah, Samantha! Até tu?

Lembrei-me do personagem Brutus, do império romano, ao assassinar César.

Império? Todos os impérios, um dia, sucumbem.

A História ensina. Não existiu nem existirá império eterno, a não ser a imortalidade da alma. Tudo mais é passageiro.

O único império que vem se arrastando há milênios é o império dos sete pecados capitais que, se pensarmos, são os defeitos humanos que nos levam, sem cessar, em busca do império do dinheiro... Sim. O único império que vem se arrastando a milhares e milhares de anos, desde que o homem existe.

A supremacia exercida por indivíduos que possuem algo mais que os demais. Vitória do “ter” contra o “ser”.

Sinto-me cansado! Olho para o relógio. Está marcando vinte e duas horas.

Vou parar por hoje. Amanhã é outro dia. Novas idéias, pensamentos outros e divagações para todos os lados. “Não há como um dia depois do outro”, refrão de quem foi magoado por alguém. Ele falou ou pensa exatamente assim.

Para mim também. Chega por hoje. Vou parar.

A Samantha também já foi lá para o terreiro. O pipocar das teclas fez com que ela cochilasse por algum tempo...

...

– “Nossa! Frio horrível! De doer até os ossos!”

Fui falando e entrando em casa.

Parei na cozinha e cumprimentei:

– “Olá, Samantha! Dormiu bem? Não sentiu frio durante a noite? Eu senti e muito. Ainda mais quando saí hoje, cedo, para fazer compras.”

Engraçado! Estou pensando...

Acordei de madrugada e não estava tão frio. Mas agora, de manhã, “tá de rachar”.

Imagine só quando entrarmos mesmo na estação do inverno!

...

– “Samantha! Fique aqui!

Vou até o fogão. Vou fazer café. Você não vai acreditar.

Fui ali, naquele restaurante, e oh!... Nem dá para pensar muito. Comi um omelete digno do paladar de um rei e dos deuses, como dizem... Excelente tempero. Muito bom mesmo! O omelete cercado por folhas de alface e fatias de tomate. Não teve outra! Completei o trabalho e esparramei por cima das folhas de alface e das fatias de tomate azeite de oliva. Só o omelete não reguei com azeite.

Você nem imagina! Foi um lanche excelente! Melhor, muito melhor do que esses sanduíches de marca que rolam pela ‘área’...

Como conheço muito bem você e sei que aprecia um ‘prato’ gostoso, aposto que comeria tudo e, ao fim, também lamberia o prato... Lamber o prato? É uma grosseria. Comer o omelete de uma bocada só até que poderia passar despercebido. Mas lamber o prato... Nem pensar! Cruz credo! Sai pra lá pensamento ruim!...

Não é mole, não! Desculpe-me, mas você é mesmo insaciável! Já a vejo naquele restaurante abocanhando o omelete inteiro. Uma só bocada, bem como as folhas de alface e as fatias de tomate.

Mas comigo não... Se você quiser, vá sozinha. Sabe, Samantha. É por isso mesmo que não a convido para lancharmos. Aqui, em casa, é outra coisa. Mas em restaurantes... Comigo não!”

Opa! Até esqueci a água no fogão! Já ferveu e agora vou passá-la pelo coador do café. E você não diz nada. Fica aí paradinha, olhando-me como quem quisesse me repreender.

Ah!... Não, Samantha! Que coisa!... Olhe para o outro lado!

Nossa!...

Cheirinho gostoso de café impregnando a cozinha toda. Aposto que até lá na rua estão sentindo esse aroma dos céus!... Você também está sentindo, na certa.

Sabe, Samantha, olhando agora para o seu jeitinho meigo, até que dá para convidá-la para um lanche. Sem fazer estrepolias, é claro!

Mas Samantha! Não adianta me olhar desse jeito! Não mesmo! Olhar matreiro, mas não caio mais! Claro. Sei que você é muito sagaz! Não... Não vou levá-la ao restaurante.

É... É isso mesmo.

Que pena!

Você não fala, eu sei. Mas pelo seu olhar, parece que entende tudo.

Vá... Vá, Samantha! Responda-me abanando o rabinho. Ou então, graciosamente, como sempre, quando eu der o sinal, você vai latir em sinal de que está compreendendo tudo. Ok!

Nisso, estão batendo na porta.

Espere, Samantha! Vou atender.

– “Sim. É aqui mesmo.”

Recebo o pacote e volto para a cozinha.

– “Samantha! Chegou a sua ração!”

...

Samantha, se você não existisse, teríamos que fabricar uma, um robô. Todos já observamos que, para onde você vai, leva esse pequeno boneco de cor azul. É o seu brinquedo favorito!

Quantas vezes já vi você, correndo pra lá e pra cá, segurando entre os dentes, esse bonequinho, companheiro inseparável. É boneco. Não sei se macho ou fêmea. Por isso, tomo a liberdade de dizer “boneco”.

Até quando você entra para dentro de casa, leva consigo o bonequinho.

Muitas vezes, você o deixa cair, como quem dissesse: “aqui está! Vamos brincar?”

Lá no terreiro, juntamente com você, costumo jogá-lo longe para você buscar. Ou então jogamos um futebolzinho. Sou muito bom, pois você não consegue tirá-lo de meus pés!

É pena! Mas você sempre será uma cadela. Não existirá liberdade para você. Não existe, para você, escolha.

...

Ufa!... Só mesmo respirando bem fundo!

Aqui, de novo, dedilhando na máquina, tentando organizar os pensamentos.

Tenho o péssimo costume de ler dois ou mais livros. Fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Tenho que me reeducar. Se é que será possível!

Diz o ditado que tudo tem seu tempo e que pau torto não endireita mais. São os tais costumes que enraízam na gente e vamos embora com eles. Costumes? Acho que são mais defeitos...

...

Observo tudo ao meu redor. Tanta coisa para arrumar e, francamente, não tenho a mesma disposição de outrora. O negócio é deixar assim mesmo. E, aos pouquinhos, ajeitar aqui e ali. Tantos assuntos a serem tratados.

Por incrível que pareça, o grande problema de hoje são os pequenos obstáculos de ontem que não solucionamos e que, com o passar dos dias, vão se avolumando.

Tenho, no meio dessa papelada que muito me incomoda, uma porção de assuntos que comecei a escrever a respeito e que, até hoje, não terminei. Incomoda sim, pois vira e mexe penso neles e fico um pouco atordoado sem saber por onde prosseguir. Quem sabe?... Sim. Quem sabe, em futuro próximo, dou um jeito em tudo!

Pego uma folha com assunto inacabado. Mexo e remexo aqui e acolá. Escrevo mais um pouco. Conforme a folha, o assunto. E assim vou pressionando as teclas. Só quero ver como tudo vai terminar. Um livro? Dois ou mais? Ao mesmo tempo? Terá minha criatividade condição de ser tão profícua assim? Constantemente? Ou chegará o momento em que tudo terá um forte abalo e um “basta” tremendo?

A lida diária como chefe de família já é tão cheia! Tantos compromissos!...

A cada dia que passa, vou sentindo que tenho menos tempo para me dedicar ao labor de escrever.

Em tempos idos, quantas noites perdidas em farras. Porém, como conseqüência delas, quanta vivência adquiri... Algumas ótimas. Outras péssimas. Nem gosto de me lembrar. Mas na vida, realmente acredito é na existência de dois pólos, duas extremidades. O “bom” é um deles. E o “ruim”, o outro.

E assim, sucessivamente, conforme já mencionei, Norte e Sul, quente e frio, verão e inverno, positivo e negativo... Tudo. Tudo, enfim, tem os dois extremos. Isso eu entendo. Lá e cá. Dois pontos em tudo na vida. Em todo o universo.

Explicar bem é que não consigo, assim como tenho sofrido muito ao ficar pensando de onde vim, para quê e para onde vou. Como foi todo o início? Quais os limites do Cosmo?

E com toda a sua sabedoria infinita, vem o mestre nos ensinando: “se vós não entendeis isso aqui, como quereis conhecer lá?”

...

Estou sem assunto. Diante da máquina, aguardo um pouquinho, como sempre, o momento em que idéias e pensamentos surjam em ritmo acelerado. Esse negócio de escrever, parar, esperar, olhar para a máquina, escrever mais duas linhas ou três e parar e recomeçar... Eu detesto! A coisa tem que surgir aos borbotões. Rápido. Assim como os dedos ligeiros vão acompanhando os pensamentos. Tão rápidos, numa cadência gostosa de se sentir e ouvir! É assim que gosto de escrever.

Ficar procurando palavras e remendando idéias, não é para mim...

Tenho sentido muita dificuldade para andar. Sobretudo, para subir e descer escadas e rampas. É interessante e dá o que pensar.

Minha filha se acidentou e teve problemas na medula, encontrando-se em fase de reabilitação. Minha esposa com problemas no joelho. Acho que é artrose. E eu, com polineuropatia periférica que, salvo engano, tem progredido. E o pior: não consigo largar o fumo...

...

Sem assunto?

Não. Até que o astral está bom.

Ah!...

O valor da moeda?

Sim. É isso mesmo! O valor da moeda, o bem material.

Quando jovem, tinha um emprego bom, o qual me proporcionava um ganho relativamente, para a época, bem razoável.

Eu e um colega fomos morar com minha bisavó. Numa casa pequena, dois quartos, sala, corredor, banheiro, cozinha e hortinha. Sim, tudo pequeno.

Dormíamos em um quarto. Minha bisavó, viúva, dormia em outro. Ela mesma fazia a sua comida, do seu jeito e própria para a sua idade. Comida bem simples e pouca era a quantidade. Uma vizinha levava para nós, eu e o meu colega, o almoço. Mais tarde, fazíamos um lanche.

Ela, viúva, mas de um capricho fora do comum. Os lençóis eram feitos de sacos de aniagem, alvejados, bem costurados um no outro, formando um lençol. Tudo sempre muito bem limpinho e bem esteicadinho nas camas! Podíamos tentar rolar uma bolinha de gude sobre ele, e ela rolava.

Pois bem. Quando recebíamos nossos vencimentos, dávamos uma pequena parte para ela. Era tudo o que recebia. Não tinha outro recurso.

Por incrível que pareça, no meio do mês, já tínhamos gastado tudo o que havíamos ganhado. O único jeito, então, era pedir emprestado a ela.

Era um milagre!

A multiplicação da mesada! Sim. A pequena quantia que entregávamos a ela era como uma pequena mesada.

Aí está o segredo de tudo! Não dávamos o devido valor ao dinheiro, e ela, idosa, cabelos brancos, curvada, passos lentos, dava um grande valor para aquela mesada...

Quantas e quantas vezes, aquela mesada tirava de apuros eu e o meu colega!

Com a mesada, ela fazia seus gastos, sua despesa, sobrando sempre... E nós, solteiros, novos, sem nenhum compromisso, apesar de ficarmos com uma parte maior de nossos vencimentos, mais do que dois terços, sempre pedíamos o milagre da multiplicação da mesada.

Para dizer mesmo a verdade, foi uma das casas, um dos lares que mais me proporcionaram bem-estar e conforto, na mais absoluta simplicidade, sem excesso de nada. Tudo muito simples. Bem simples mesmo. Muito arrumadinho. Extremamente limpo cada ambiente.

Até a pequena horta onde cresciam, esbanjando “saúde e vigor”, os pés de couve. Cada folha de couve de causar inveja a qualquer hortifrutigranjeiro. Foram as mais belas folhas de couve que já vi em toda a minha vida! Muito macias, verdinhas e gostosas! O amor que minha bisavó dedicava àqueles pés de couve foi muito... E, como a natureza é divina e profícua, os pés de couve retribuíam o amor recebido.

Tem mais. Eu e o meu colega nos utilizávamos daquelas folhas. E, como também uma multiplicação de folhas de couve, até os vizinhos as pediam à minha bisavó. E as recebiam para completarem o prato do dia.

Incrível! Porém, tudo verdadeiro!

Naquela casa, aconteceram milagres! Os mais bonitos e singelos!...

Eu já li em algum livro qualquer coisa mais ou menos parecida. Qualquer coisa assim: “a felicidade não se mede pelo que temos, mas sim pela nossa capacidade de não termos”.

No momento, esqueci o nome do autor, mas concordei, de imediato, com o autor daquele pensamento que combinava perfeitamente com um pensamento que tive e que escrevi num pedaço de madeira: “não busquemos a luz divina longe, mas sim em nosso interior”.

Quanto mais simples a vida, melhor é! Quanto menos eu precisar de objetos, aparelhos e mil outras coisas criadas para um suposto conforto do ser humano, mais feliz serei. Para dizer mesmo a verdade, dentro de mim existe um outro ser detestando todo apetrecho em nome de um falso conforto.

Por isso, eu sempre admirei o andarilho: uma mochila e só!... Seu teto pode ser a copa de uma árvore. Seus sapatos podem ser a calosidade de seus pés surgida durante seu caminhar. Sua cama pode ser a gostosa relva, um monte de capim, de folhas ou de palha. Seu copo ou xícara podem ser suas mãos. O filtro d’água pode ser o silencioso e límpido córrego ou riacho. Seu alimento, o mesmo que serve para as aves e os animais de pequeno porte, tirado da natureza, ou mesmo a porção dada por alguém caridoso.

Sim. O andarilho, ao chegar em idade avançada, é depositário repleto de sabedoria. Sempre que vejo um andarilho, procuro me acercar dele e bater um bom “papinho”, ouvir fatos acontecidos, riquíssimos de saber.

O andarilho, em meu pobre conceito, é como diamante lapidado. Um diamante que, no início de sua andança, tinha suas facetas cobertas de pó. Iniciava sua viagem sem destino, mas convicto de ser parte da natureza. Com o correr dos anos, amealhando experiências, as facetas foram ficando limpas. Ao aproximar-se o início da velhice, tornou-se como um belo diamante, com todas as facetas brilhando!

E o andarilho agora é uma jóia perfeita!...

Uma das mais lindas fotografias que tenho, fotografada por mim, é de um andarilho boliviano. Linda!... Uma foto de causar inveja a qualquer profissional em busca de registrar o belo.

Hoje, não tenho a mínima idéia se ele vive ou prossegue em seu caminhar, formando sua estrada da vida. Nunca pude ao menos imaginar o que estará fazendo, neste exato momento, em algum lugar que também não sei qual.

Naquele inesquecível dia, não perguntei seu nome, pois tinha plena convicção de que nunca mais o veria de novo. O nome não tinha importância alguma. Minha ansiedade e único objetivo foi registrar sua figura magnífica de andarilho.

Em meu álbum de recordações, essa foto é destaque. Sobre ela, milhares de páginas eu poderia escrever. Mas nenhuma com tanta autenticidade como o que sinto agora que me relembro dele, o andarilho mais maravilhoso que já vi em minha vida.

O que aconteceria se todo ser vivente fosse um andarilho carregando consigo somente a mochila com pouca coisa de uso pessoal e, quem sabe, alguma pecinha que ele trouxesse recordação de algo que tivesse, assim como eu agora, uma linda recordação?

Andarilho...

Velhice...

Recordações...

Mudemos, pois, de assunto.

...

Embora o gosto pela leitura e para escrever a respeito de minha experiências, com um percentual maior do ingrediente “criatividade”, tenho um péssimo defeito que muito me atrapalha as atividades: o tal de deixar para amanhã e a preguiça mental.

Abro um livro, começo a ler e, dependendo, de imediato, ela chega dizendo:

– “Amanhã você continua”.

E, por isso, estou com a estante cheia de livros para ler ou que comecei a ler. Essa preguiça também ataca a minha disposição para escrever.

Encaminho-me direção ao escritório.

Paro. Vejo a máquina de escrever. E ela retorna com a mesma cantilena:

– “Depois você escreve.”

...

Constantemente, em qualquer lugar, surge uma idéia, um pensamento. Anoto em um pedaço de papel e, quando vou escrever a respeito, ela, sorrateiramente, surge com o mesmo propósito. Mas como já sei de sua presença, costumo vencer a luta e nem que sejam futilidades, consigo dedilhá-las na máquina.

Máquina? Sim, máquina de escrever.

Por que não o teclado do computador? Olhe! Ele está ali! É só chegar e usá-lo.

Não. Não quero! O teclado da máquina é mais simples. Escrevo sem olhar para as teclas. Tem outra! Aprendi, em toda a minha vida, a utilizar borracha ou coletivo. Se depender de mim, a indústria de borracha e corretivo usados pelos estudantes nos escritórios, ainda que há tempos atrás, nunca será fechada. Sempre produzirão e o emprego de seus funcionais estará, pois, garantido. E outra, ainda mais importante: em minha vida, em mais de quarenta anos, usei praticamente todos os dias a máquina de escrever.

Trabalhei em banco, cartório, indústria têxtil, secretaria de governo e, nunca, em momento algum, durante todos aqueles anos, senti dores nos dedos ou nas mãos. Só vim a conhecer a sigla LER, designação de problemas nas mãos, pulso ou sei lá mais onde, com o advento do computador. Esse tal de movimento repetitivo, para mim, é conversa para “boi dormir”! É enganação! Querem salvar a “pele” do computador! Sem dúvida, tenho essa convicção.

Outro fato que me impede de ir lá para o teclado do computador é que ele não tem “alma”. Assim como nos caixas eletrônicos dos bancos, é só encostar os dedos. Não ouvimos o som gostoso das teclas da máquina. Nem ao menos sentimos a pressão dos dedos nas teclas.

Sou antigo.

Tudo bem. Só quero evitar, enquanto posso, o tão usado computador. Fico com o que sempre tive.

Quero a minha vida o mais simples possível. Sim. Bem simples.

Até sem o atual dono da praça, dos ouvidos, ou melhor dizendo, o também famoso em nossos dias, o celular.

Depois escrevo sobre ele.

Karuk
Enviado por Karuk em 25/05/2006
Código do texto: T162847