O desabafo de um farrapo humano

Estou com dor de fome.

E minha barriga dói, sempre, de vontade de defecar. Não sei qual dor é pior, se a da fome ou a da vergonha d'eu não ter uma privada.

Sempre apanhava por fazer minhas necessidades na rua, onde um segurança, um policial ou um transeunte cheio de moral me via. Então, aprendi a cagar e urinar nas calças; cansei dos nãos dos donos de bares, de lojas, até de igrejas e, o que é pior, dos "donos" de lugares públicos:

- Aqui não tem banheiro.

- A chave não está comigo.

- Está estragado.

- Desculpe, não tenho ordem para emprestar.

Se não me engano, são estas as palavras que mais escuto.

Depois, vou lavar meus farrapos nos córregos da "minha" cidade. O duro é que as águas dos córregos da "minha" cidade, quase sempre, tem mais bostas do que as levei e lavei.

Ando pelas ruas pedindo ou buscando restos, que disputo com cães e gatos que também têm fome.

Sinto em cada olhar o asco, a indiferença e a vontade de todos que eu morra; mas só para "acabar com o meu sofrimento".

Sinto que as pessoas sofrem por não poderem me matar, só uns mais afoitos, depois das farras boas, das grossas, buscam a lombra com as chamas e o cheiro de queimado da minha carne, os pobres coitados "loucos" acham que estão limpando o mundo.

Anteontem, quando uma mulher muito bonita me abriu o portão, vi um pássaro lindo preso em uma gaiola de ouro, o coitado era triste como eu. Ela tinha um cãozinho branco nos braços, que rosnou para mim "por ela", acho que o bafo do danadinho era cheiroso. Ela, muito educada, me pediu desculpa por não ter nenhum resto de comida e fechou como tantas outras pessoas o portão nesta minha cara imunda. Ela sente orgulho da sua gaiola de ouro, do seu pássaro triste e do seu cachorrinho lindo.

Só ando a pé, carona nem pensar, o transporte coletivo não me abre as portas. Também, por que preciso de carro? De ônibus? Se não tenho para onde ir, se meu caminho de volta inexiste.

E o prefeito constrói mais estradas.

Asfalta mais ruas.

Rasga a cidade e faz mais ruas.

E eu continuo com fome, com sede, com vontade de cagar, com vontade de beber café, com vontade de pitar, com vontade de mijar.

E o prefeito continua construindo a cidade para carros.

Carros lindos, velozes, reluzentes.

E eu sigo com dor, mas crente que vou para o céu, pois pregam há séculos e séculos que é dos pobres, dos miseráveis o Reino de Deus.