N I C O L L E T A
O barulho das ondas, chocando-se contras as pedras, tornara mais longos os seus dias naquele apartamento. Hoje ele fazia 81 anos e sentiu o peso da solidão que sem razão de ser, invadira tudo nos últimos tempos.
O sol não estava convidativo para um passeio, mesmo assim resolveu ir à praia. Queria estar lá fora, andando – coisa que não fazia habitualmente - sentir a vida, talvez relembrar um passado que se pudesse, modificaria. Um passado de viúvo de longa data, no qual filhos e netos, cada um tomara o seu rumo.
Ao sair do elevador, esbarrou no oftalmologista amigo seu, que nunca desistia de convidar:
- Vamos fazer a cirurgia de catarata, sr. Joaquim?
- Qualquer dia, doutor, qualquer dia!
Andou meia quadra e percebeu que nuvens negras começavam a encobrir o sol. No momento em que gotas de uma chuva esparsa caíram, ele pisou na areia. O tempo ganhara instabilidade.
Voltou.
Antes de atravessar a calçada, vislumbrou, através das janelas do seu apartamento, uma movimentação de vultos atrás dos vidros. Algo de estranho estava acontecendo. O porteiro veio correndo ao seu encontro.
- O sr. não pode entrar agora, sr. Joaquim!
Ele se lembrou do aniversário e um pensamento alegre invadiu o seu coração. Não disse nada para não estragar a surpresa. Apenas esclareceu:
- Vim pegar o guarda-chuva. Vai chover. Quero caminhar um pouco!
- Leve o meu! Toma! Bom passeio! Demore o tempo que quiser, Sr Joaquim!
Ele entendeu a cumplicidade da sugestão. Sem dizer nada, retornou à orla. Afinal, não é todo dia que se faz 81 anos. Filhos e netos finalmente se lembraram da data! Era isso!
Já bem mais tarde, quando voltou, não percebeu mais os vultos de pessoas nas janelas. Tudo quieto. Atravessou a rua com passos lentos, ansioso pela surpresa. Entrou no jardim. O porteiro, quando o viu, mal conseguiu falar:
- Ah! Sr. Joaquim... dona Nicolleta... - a voz tomada de emoção.
- O que aconteceu?
O porteiro hesitou, baixou os olhos. E sua voz saiu entalada da garganta:
- Ela se foi... Já não está mais entre nós...
A notícia chegou como um choque. Ele arregalou os olhos. Agora pôde entender a movimentação de pessoas no apartamento que julgara ser o seu. Triste e pensativo, retornou à praia. Andava cabisbaixo, enquanto as lembranças da vizinha de 95 anos começavam a povoar a sua mente.
- Dona Nicolleta, comprei uma caixinha de suco. Delicioso. Vim trazer um pouco, mas parece que a senhora só toma chá.
Nicolleta ria, jogando a cadeira de balanço pra trás.
- Chá?
- Sim! Chá de canela...
- De canela???
De canela de cachorro! Não pára em casa! Fica andando o dia inteiro!
Nicolleta ria alto. Por um momento as rugas do rosto se iluminavam. Os olhinhos embaçados brilhavam. Movimentava com mais vigor a cadeira de balanço. E ajeitando os cabelos brancos, retrucava.
- Senhor Joaquim, o senhor parece um poste!
- Alto? Bonito?
- Nada! – a velhinha esticava a mão, como se estivesse detendo algo. – Parado! Sem sair daquele apartamento!
Os dois caíam na risada.
As brincadeiras eram sempre as mesmas. Os risos variavam. Faziam jorrar diferentes alegrias de cada um dos corações. As emoções eram renovadas.
Sentindo agora mais pesados os 81 anos, ele reviu as risadas dos dois; ela batendo na sua porta para lhe trazer algo, para saber se ele estava bem, se não necessitava de nada. Gostava de ouvi-la lendo em francês. Ficava na janela da sala olhando os movimentos do mar, embalado pela voz quase inaudível de dona Nicolleta.
A primeira vez que ela quis traduzir, ele a interrompeu:
- Não, dona Nicolleta! Em português não teria o mesmo encanto!
- Mas o senhor não sabe francês!
- Sei apreciar a melodia da sua voz. E isto me basta! Nessa língua, a senhora se torna mais encantadora.
Ela sorria. Por um momento os olhinhos opacos readquiriam o brilho de uma juventude perdida há muitos e muitos anos. Depois, séria, recolocava os óculos e reiniciava a leitura. Sua voz soava quase infantil pela sala.
Como se ainda a estivesse ouvindo, ele sentou-se na raiz de uma árvore. Fincou o guarda-chuva na areia, estendeu os braços e cruzou as mãos, apoiando-se no cabo. Pensou em dona Nicolleta, encurvada, andando apressada pelo corredor. Olhou o mar. Olhou ao redor. Tudo lhe pareceu sem vida, sem sentido. Sem nenhum valor... Uma inércia, um torpor, foi tomando conta de si. Gotas de chuva escorriam pelo corpo e a mente martelava impiedosamente:
- Dona Nicolleta já não está mais entre nós...
Sentiu a cabeça sem controle, pendendo para a esquerda. Os braços escorregando, abandonando o guarda-chuva. Percebeu que não tinha mais domínio algum sobre si. Um relaxamento, uma sensação de paz, de conforto, se apoderou do seu corpo.
Instantaneamente, a areia foi se tornando encharcada. Céu e mar se encontraram na negritude de nuvens densas, carregadas.
Já não se via mais o guarda-chuva, onde antes o sr. Joaquim apoiava os braços. Tudo se transformou em enxurrada.
P.S.
– este conto escrevi em Porto Alegre, quando participei de uma Oficina de Contos na 52. Feira do Livro. E mais engraçado é que tenho muitos contos escritos lá. Parece que a cidade me dá mais inspiração...