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Transcendente

                             Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
                               Alberto Caeiro - O Meu Olhar


            
*Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti  me confiou a piedade divina, sempre me rege, me guarde, me governe e ilumine. Amém


                  O sol avermelhava o horizonte e mais uma noite daquele verão sem fim avizinhava-se. No alpendre da casa que fora do avô, o pai olhava as paredes da nova casa, há poucos metros da casa em que nascera.
             - Mais uns meses e a gente se muda, dizia e a menina, entretida num jogo de pedrinhas, ficava sonhando com os espaços em que brincaria com os irmãos, onde dormiriam, fariam refeições. Em tudo um sabor de felicidade, de coisa no seu lugar, como deveria ser.
               Mas sabia também que o pai estava preocupado. Iniciava o ano de 1969 e a seca prolongava-se, o trabalho aumentava e os custos para manter os animais vivos também. Ouvia a conversa com a mãe e pensava que o rádio só dava noticia ruim, de gente que fugia da morte pela fome ou pela sede, descendo a procura de trabalho nas usinas de açúcar ou na capital.
              Naquele verão, era comum presenciar procissões de miseráveis descendo pela estrada em frente a casa. Eram famílias inteiras arrastando-se, fugindo do sol escaldante, esgueirando-se pelas margens, pedindo abrigo embaixo das ingazeiras da beira do rio, um fio de rio, pequenas poças que matavam a sede dos animais que ainda restavam.
              Muitos paravam, pediam água, comida ou qualquer coisa que pudesse aliviar a penúria de suas vidas. O pai sempre atendia com um pouco de farinha, de feijão ou milho, guardado da última safra. Pouco, mas aliviaria, por alguns dias, a fome daquelas pobres criaturas de olhos tão tristes.
             A visão daquelas figuras magras, descalças, vestidas em trapos, a visão daquelas crianças ás vezes roendo uma manga verde, causavam naquela menina de quase seis anos, uma dor inexplicável. Pensava em como era não ter casa, não ter o que comer, onde dormir quando a noite chegasse. Nas suas orações ao deitar, passou a pedir também por elas.
            Aquelas pessoas em sua marcha fugindo da morte introduziram em sua vida a noção das palavras “fome”, “precisão”, “necessidade”, “ajuda”, “Deus lhe pague”. Ouvia diariamente esses murmúrios vindos da porta de casa, seguidos do “amém” contrito do pai ou da mãe e entristecia.
            Naquele fim de tarde, o pai olhava pensativo o horizonte, quando um andarilho se aproximou. Era alto, magro e encurvado, talvez pelo peso que carregava às costas. Pediu licença, deu boa tarde e pediu água. A mãe foi buscar, a menina ardendo de curiosidade postou-se do lado do homem e disparou uma rajada de perguntas sem esperar pelas respostas. Perguntou de onde vinha, com se chamava, se tinha família, se estava cansado... O pai tentou impedir, mas o homem sorriu e respondeu a tudo, pacientemente.
             Quando bebeu a água, perguntou se era abusar muito se pedisse um café. A mãe trouxe também alguma comida, que guardou, mas sorveu o café devagar, fechando os olhos, como se saboreasse a melhor bebida do mundo. A menina continuou com as perguntas e ele respondia sempre sorridente.
          Comentou com o pai que ela era muito esperta, que era comum as crianças fugirem dele, por sua aparência e ela não demonstrara nenhum medo. Disse ainda que tinha o “dom da oração”, que era um “curador” e que gostaria de “rezar” na menina.
           O pai concordou, o homem tomou a menina pela mão e conduziu-a ao centro do terreiro de chão batido. Um contraste aquele homem negro e aquela menina de longos cabelos encaracolados e louros de mãos dadas. O olhar assustado da mãe contrastava também com a solenidade do momento.
           O homem desenhou um círculo com a ponta de uma faca que apareceu em sua mão e desenhou algo dentro dele. Posicionou a menina bem no centro, colocou a mão direita em sua cabeça e murmurou algo numa língua que a menina desconhecia. De cabeça erguida, ela observava as mãos calosas, a roupa rota, os pés descalços, a pele brilhante, a carapinha branca, o olhar firme, sereno.
            Não saberia dizer quanto tempo ficou ali, mas seu pensar de menina lhe disse que a “reza” daquele homem criava em volta de si, um “escudo” de luz, protegendo-a de todo mal e ela havia se tornado alguém especial.
          Ao longo da vida sempre que enfrentou momentos difíceis de muita tristeza ou dor, mas também de alegrias e vitórias, a menina, hoje mulher, pensou/pensa na benção daquele homem, naquele “escudo” pacificando-a, iluminando-a e pensa que teve o privilégio de conhecer um anjo. O seu Anjo.



*Minha mãe me ensinou esta oração desde que aprendi a falar. É um dos mantras da minha vida.