SEM DIÁLOGOS COM A CLASSE (ou Fragmentos de Uma Vida)
FRAGMENTO 1
Ela é professora, casada. Mora numa casa simples, limpa e bem cuidada. Nunca teve filhos, também nunca recusou de criar os filhos dos outros que chegavam de mansinho à sua porta e por lá ficavam até tomarem rumo no mundo.
FRAGMENTO 2
Começou a sua carreira na Zona Rural. Levantava às 5 da manhã pra pegar um ônibus que ia distribuindo os professores pelas fazendas.
Inúmeras vezes ela teve que sair correndo de vaca brava. Certa vez, fugindo de uma vaca parida, ficou presa numa certa de arame farpado. A vaca veio bufando, pronta para o ataque. Atrás dela, uma nuvem de poeira vermelha levantava. A professora viu a vó pela greta. A vaca sapateava, como se fosse uma bailarina cantando:
- “levanta sacode a poeira e dá volta por cima”
Vinha rasgando tudo pela frente. A professora pensou, desesperada:
- Meu Deus! E o meu Plano de Saúde que não tem Auxílio Funeral... meu marido não tem dinheiro...
Nem terminou de completar o pensamento, a vaca já estava ao seu lado, sapateando mais que Carmen, de Bizet. Ela fechou os olhos, apavorada. Sentiu um calor apavorante percorrendo todo o seu corpo. Permaneceu de olhos fechados, presa nos arames, mas viu que nada acontecia. Resolveu então abrir um olho. A vaca estava ao seu lado, cheirando-a, como se fosse um cão farejador.
(Vaca cheira alguém? Sei lá! Já fui professor, mas nunca trabalhei na Zona Rural e nem esperaria uma vaca vir me cheirar).
FRAGMENTO 3
Adora cozinhar, cuidar da casa. Não perde um programa de TV que forneça receitas. Copia todas que a interessam. Às vezes quer fazer o prato, mas falta o dinheiro pra comprar o trigo, o elemento básico de quase toda receita.
FRAGMENTO 4
Quando recebe o pagamento, aliás, quando recebe o contracheque, corre a uma cooperativa da classe para fazer nova compra para o mês. O dinheiro não chega. Chega apenas o contracheque, que é o controle de quanto ela pode empurrar para o mês seguinte.
FRAGMENTO 5
Ela cancelou o Plano de Saúde. A mensalidade do plano atingiu 5 dígitos. Quase lambeu o topo do seu salário. Ela se viu acurralada e teve que fazer a opção de pagar uma dívida (mensalidades atrasadas) para se livrar do Plano.
FRAGMENTO 6
Certa época, quando a categoria resolveu fazer umas reivindicações em frente à Prefeitura, saiu um Vereador em socorro dos docentes, pronto pra ajudar. Mas em determinado momento, ele se desentendeu com um deles, rodou a baiana, subiu no palanque e literalmente berrou:
- Lavo minhas mão! Ocês não quer me ouvir! Ocês é um bando de comunista! Pra mexer com menino, ocês ganha até bem!
Uma colega dela quis peitar o Vereador pela grande mentira que ele disse, pela afronta. Ela calmamente segurou a colega e recomendou:
- Mirtes, deixe pra lá! Esse vereador não pode mesmo defender a gente! Não vê como ele fala errado? Ele não precisou de professores!
FRAGMENTO 7
Como uma pessoa pública que exerce certa influência na sociedade, ela também já foi obrigada a sair escondida pela porta dos fundos: um pai foi à escola armado de faca e revólver pra “matar a professora que tinha brigado com o filho dele”.
FRAGMENTO 8
Eu a aconselhei a ser motorista de ônibus ou cobradora (trocadora). Ganharia um salário bem maior que professor. Ela me disse:
- Prefiro não! Quando chego na sala, abro os cartazes e vejo aquelas carinhas de felicidade, os olhinhos dos meus alunos brilharem... isso para mim, são como fagulhas de estrelas no céu....
HOMENAGEM:
Escrevi este conto pensamento na minha irmã, que é professora, que trabalhou na zona rural e enfrentou situações semelhantes. E de maneira divertida, conta os causos... Embora 90% ficção, a história é praticamente o início da carreira dela.
Eu quis também, homenagear o dia dos professores, isto quando escrevi... rs.