O LABIRINTO

O LABIRINTO

O domingo amanheceu agitado, desde as primeiras horas a "procissão" de gente de todo tipo dirigia-se para um galpãp abandonado, na periferia da cidade. A pé, em bicicletas ou até em velhos carros que só se moviam por milagre. Idosos e jovens, homens e mulheres íam todos em idêntica direção, os facões e enxadas embrulhados em jornais, esfarrapado disfarce.

Estava em andamento mais uma invasão de terra... o novel município de Ananindeua já assistira a outras tantas, aquela era só mais uma. Com estratégia própria de guerra civil, os participantes principais eram todos avisados com antecedência e estes repassavam a ordem de assalto para os demais.

A invasão inicial se transformava em pouco tempo numa "invasão' oficial, espécie de favela da região norte, às vezes instalada sobre área alagadiça mas, quase sempre, situada em terrenos de grande valor. Uma bem montada rede de informantes orientava os profissionais de invasão para as áreas em débito com as prefeituras, em litígio judicial ou cujos donos não fossem pessoas de projeção social ou política.

Contando com as falhas na aplicação da lei, com a certeza da impunidade, com uma legislação que apadrinha o incompetente e o preguiçoso, os invasores atuaram sem restrições no coração do Pará durante boa parte dos anos 90. E assim sucedeu com a "invasão" Laranjeiras, onde o jovem microempresário Albertino adquiriu modesto lote, que o sistema todo é muito bem organizado, com projeção das futuras ruas e terrenos de tamanho igual.

O local invadido vira uma espécie de deserto em 2 tempos, as árvores e os arbustos próximos são transformados em cercas, traves de teto ou mesmo lenha para "fogões" improvisados, enquanto os barracos surgem do nada e cavam-se poços e sanitários. A primeira residência a ser concluída é invariavelmente uma "estância", casa de comércio de tijolos, madeira e outros materiais para construção. Todo resto vem a partir dela!

Uma espécie de capataz maior é apontado pelos demais como o "dono do pedaço", com poder de vida e morte sobre o restante, embora sozinho não teria condições de invadir coisa alguma. A este "chefão" cabe decidir quem entra ou não na "invasão", quem fica nela e pode até revender terrenos já pagos, caso estes não sejam ocupados no prazo por êle determinado. Por via de regra acaba dono de todos os lotes não comercializados, às vezes meia dúzia ou mais, enquanto inferniza a vida de quem tem um só.

Orinaldo morava no outro extremo da rua (ainda sem nome) onde Albertino sonhava construir no futuro uma filial de sua Farmácia Chaves, no lote de esquina adquirido na "invasão" Laranjeiras, fechando já seu primeiro ano de existência. Curiosamente, as lideranças "comunitárias" que se apossam das "invasões" não conseguem sequer o modesto milagre de convencer os moradoresa numerar corretamente seus casebres, organizando com alguma lógica a situação da vila em si e de seus habitantes. Adiante, a entrega de contas de luz, de uma simples carta ou mesmo o uso do endereço em documentos oficiais ficam comprometidos pela bagunça que é a numeração nessas áreas.

Aposentado, o velho Orinaldo seguia a rotina de boa parte da população jovem da periferia da capital paraoara e dos municípios limítrofes. Ou seja: de manhãzinha, levar os passarinhos engaiolados para "tomar ar" nas matas próximas ou no que restou delas. Sol a pino, solta-se pipa até que a fome dê as horas para o almoço frugal de sempre. Após às 4 horas, a invariável "pelada" diária, por vezes em meio a não menos invariável chuva, quando esta se atrasa ou prolonga demais sua visita.

Espécie de "pudim de cana", de rosto avermelhado pelo excessivo consumo da "branquinha", o ancião desocupado deixou-se levar pelo vírus da cobiça e, como quem não tem nada para fazer faz besteiras, resolveu invadir o terreno permanentemente vazio do esforçado Albertino, que só muito tarde veio a saber da patifaria do "vizinho". Afinal, "quem tem um, não tem nenhum", pensava o velho.

Assim tramou, assim fez e, sem comunicar ao filho -- soldado-bombeiro no batalhão próximo, situado no bairro -- nem à própria família, começou a construção dos alicerces de uma "meia água", tudo feito às pressas, correndo contra o tempo e a ira do ludibriado farmacêutico.

Albertino amanheceu na "invasão", bufando de ódio justiceiro, mas tres dias haviam sido suficientes para que o velho Orinaldo levantasse meio metro de parede de todos os cômodos da casa. O filho, valendo-se de seu posto de militar, tentou neutralizar a reação furibunda do proprietário lesado, o que conseguiu a custo. A mãe do rapaz, temendo pela vida do tresloucado marido, implorava aos céus para que não sucedesse ali nenhuma desgraça.

Albertino vira a futura farmácia esboroar-se no espaço como um prédio implodido mas decidiu recuar a fim de não cometer uma asneira irreparável. Em todo casao, dirigiu-se imediatamente ao quartel dos bombeiros onde, após longa conversa com o comandante, teve deste a promessa de que o filho-soldado não se meteria na confusão arquitetada pelo ganancioso pai. Agora, a briga era só entre êle e o velhote oportunista.

Na manhã do 4° dia o achincalhado dono da farmácia visitou seu ex-lote acompanhado por uma dupla de bem nutridos seguranças, mas o teimoso Orinaldo já estava "no batente", "puxando" uma carreira de tijolos.

-- "Escuta, vovô, te proponho um bom negócio para nós dois. O sr. pára a obra agora e lhe deixo retirar a tijolada toda e o que puder levar das pedras do baldrame. Do contrário, o caldo vai engrossar pro seu lado".

-- "Ora, ora, rapaz... por quem me tomas! Nunca tive medo de homem! Eu vim de "Parago-bala", (1) terra de faroeste e onde eu via tiroteio todo dia. Comigo não tem acordo"!

Intimamente Orinaldo já se dava por perdido, a família em pêso negara-lhe apoio e a vizinhança acompanhava de longe, entre apreensiva e curiosa, o desfecho daquela absurda peleja. Mas o velho "batera pé" na certeza de que o rapaz estava blefando e com a remota esperança de ser indenizado por aquelas indesejadas "benfeitorias", já que nem em sonhos pensava carregar de volta o milheiro e meio de tijolos que investira naquela louca empreitada.

O comerciante, prevendo a teimosa resposta, deu-lhe às costas mas deixou aos seguranças a incumbência de impedir nova remessa de tijolos ou de qualquer outro material para o velho. Voltou pouco depois com três robustos pedreiros, animados por polpuda paga e, assim que a carrada de materiais de cosntrução chegou ao local, puseram mãos à obra. A ordem era subir um alto muro em torno da modesta "construção" do aposentado, emparedando-o finalmente dentro de seua malfadada empresa.

Orinaldo não previra tal reviravolta em seus planos e, portanto, não se precavera trazendo alimentos, apenas um punhado de farinha e a cabaça d'água. Passou um dia de cão entre as paredes ensolaradas, sem ventilação alguma porque atingiam quase dois metros de altura e a costumeira chuva da tarde acordou-lhe um reumatismo do qual há anos não se lembrava.

Em desespero de causa, pensou em transpor o "muro da vergonha" de seu infortúnio, que crescia como onda fatal prestes a afogá-lo, mas perdeu a coragem ao ler nos olhos de um dos atentos seguranças a maléfica intenção que o inspirava.

De Orinaldo sumira toda a arrogância anterior e, qual Minotauro estabanado, palmilhava desconcertado seu exíguo labirinto, sob o pêso das chacotas e piadas dos pedreiros divertidos.

A noite perdeu seus encantos e suas estrelas, a lua escondeu-se comovida e, quando raiou o 5º dia, o sol iluminou um sábado febril, com cheiro de tragédia no ar e presságios de morte rodando como poeira em torno dos envolvidos. Na verdade, absolutamente ninguém dormira e, logo que Albertino retornou com os pedreiros, uma multidão apinhou-se ao redor da construção, protestando com veemência contra a maldade dos seguranças, que estavam a torturar um pobre ancião.

Aproveitando a maré de sorte Orinaldo passou a soltar sonoros gemidos, que agitaram ainda mais a populaça. O farmacêutico manteve-se irredutível e, alegando que se o fato fosse com êles fariam a mesma coisa, deu seguimento à elevação do muro.

Sem almoço, sem janta e sem o matinal café o velho, ao final do dia, estava realmente passando mal e somente uma conversa entre o filho militar do idoso e o proprietário do terreno mudou o dramático rumo dessa história. Abriu-se uma passagem no imenso muro, à tardinha, sob os aplausos da multidão e Orinaldo, cabisbaixo e humilhado, retirou-se cambaleante para casa.

Somente lá, entre os seus, soube que a famíliaa sacrificara a televisão em cores recém-comprada, cedida como compensação ao farmacêutico prejudicado pela "palhaçada" do aposentado. Votou-se pela imediata "transferência" do desastrado vovô para a casa dos demais filhos, em outra cidade, até que fosse esquecido o vexame.

A comunidade ficou sem farmácia, o sr. Chaves desinteressou-se do malfadado lote mas, a partir do incidente, ninguém ousou invadir novamente o terreno e os restos da infeliz construção resistem ao tempo, espécie de lição escrita com tijolo e cimento declarando em alto e bom som que "quem não tem cão, caça com gato... todavia, pode acabar muito arranhado"!

"NATO" AZEVEDO