Dorme

O braço debaixo do travesseiro. As pernas encolhidas uma na outra. A manta enrolada entre elas. O lençol metade ainda esticado e outra metade cortando o abdômen. Esta noite era mais uma, mas ali ao lado, ela não sabia se estava a tristeza, a saudade, ou carência. Noite leve poucos movimentos e um peito que pulava incessantemente de raiva, ódio, pavor e uma saudade devastadora. ‘Queria que você estivesse aqui’. E de repente uma onda, uma onda gigante molhou o lençol, a manta e inundou todo o quarto. Havia momentos em que ela respirava, havia outros em que morria, abria os olhos e logo percebia que ainda estava viva. Os braços já cansados de nadar começaram a escolher frutas em um supermercado. Aquela raiva ainda estava presente dentro daquele coração, um pãozinho francês esmagado entre seus dedos e a casca cortando a palma da sua mão. Leite, carrinho de compras e sua mãe gritando no corredor da sala de estar. Venha ver! Havia um gato, mas quando se aproximou com toda raiva sentiu a onda levá-la de volta para um quarto onde ela se via dormindo, mas ao lado ainda estava todo aquele sentimento de raiva. Pegou um travesseiro nas mãos e na ponta dos pés para não se acordar tentou sufocar aquele sentimento, aquele algo negro, com tanta gordura, tanto perfume, e tanto sangue que dormia ao lado dela, mas não a deixava descansar.

Um peito apertado, uma garganta cheia de algodão, uma vontade, um desejo, um erro, uma pena, uma força que tomava seus braços, que fazia com que apertasse durante a noite a manta toda enrolada sobre o peito. Era tanta a força que começou a sufocar e percebeu que eram suas próprias mãos sufocando o saco de gordura, fazendo com que o sangue escorresse por seus braços. As pernas dele debatiam e acertavam as suas costas. Nunca foi tão divertido brincar de cavalinho. Nunca foi tão divertido deitar sobre um corpo e pesar uma tonelada. Ela podia ver a pele se esticando em certos locais e se encolhendo em outros. Podia ouvir os ossos quebrando. Por um momento, ao ouvir fortemente o som de uma morte dolorida, seu peito ardeu, estava morto, e ela era culpada. Mas eles estavam fazendo amor, não podia ter sido esta a razão da morte. Talvez os movimentos intensos, mas ela não tinha aquela força. Aquele corpo, morto, despedaçado em cima da sua cama não podia ter sido obra dela. O que ela deveria fazer? Olhou para si e viu seu pijama encharcado de sangue, não podia ser o dele. A luz estava apagada, deitou-se sobre ele e então, percebeu a tragédia.

O lençol começou a grudar nas pernas, estava suando, procurou o travesseiro mas não encontrou. O coração pulsava forte. Tentou abrir os olhos, mas a onda voltou. Sentiu-se aliviada em morrer afogada. Uma sensação de libertação, de salvamento, estava livre da culpa. Podia ver o gato, ouvir o gato, mas ainda sentia o cheiro daquela raiva que a havia feito matar. Mais uma vez ouviu sua mãe e desta vez resolveu abrir os olhos. Levantou-se e seguiu o dia com o olhar de quem havia morrido várias vezes, e cheirava a assassina.

BCA
Enviado por BCA em 21/05/2009
Reeditado em 21/05/2009
Código do texto: T1606570
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