Dane
Se a dádiva da vida é apenas viver, eu discordo. Neste dia, em que o céu amanheceu sadio e encantador e eu, acordei maltratada e ferida, confesso que se inverteram. O sol murchou e eu ergui-me. Que se dane o céu, ele permanece ali enquanto eu aqui preciso dele para voltar ao normal. Que se dane a beleza do céu enquanto eu estou aqui, fria. Que se dane o azul enquanto estou cinza. Feliz. Seria. Que se dane a vida a ser vivida, gosto disto que não vive dentro de mim. Gosto desta coisa que não sei o que é, mas que interage comigo, que me torna cinza e fria. Não quero a dádiva da vida. Quero só meu corpo aqui presente em algum lugar para que eu possa dizer que se dane a vida. Gosto disto escondido em mim. Gosto deste sorriso que volta a aparecer de repente, num surto psicótico que me fala que a chuva voltou a cair no meio deste sol, fazendo-o esconder. Que se dane esta vida, quero mesmo é ter estes olhos inúteis para observar os não detalhes desta chuva maravilhosa. Esta grosseira chuva que deixa tudo encharcado. Que se dane a vida, quero este sentir inexistente dentro de mim. Não saber quem sou nem o que faço aqui nem o que todo mundo faz aqui. Que se dane a vida, quero só existir e deixar de pensar nisto. Esta droga de chuva me molhou, molhou minhas roupas, tive que fechar as portas. Que se dane a chuva, quero é senti-la, quero é participar dela, quero chover com ela, sem saber quem sou eu, sem saber que existe um eu. Este eu estraga tudo, então que se dane este eu. Que se danem os compromissos que tenho, quero é participar deste tempo que corre, quero é existir junto ao mundo e não as pessoas que não existem, que não vivem. Que se danem as pessoas todas, que morram as pessoas todas. Eu sobreviverei e continuarei gritando como o vento, dizendo que se danem os ventos, sou apenas vento e isto me basta. Que se danem os nomes, que se danem as línguas, que se dane a matemática. Quero que permaneça apenas o puro, o que não existe fora de nós. Que se danem todos nós. Que se danem as roupas no varal, as provas, os relacionamentos, as famílias, os empregos, as morais. Que tudo vá se danar. Esta chuva toma conta do que eu não sou e isto é o que há de fantástico neste corpo podre e nada complexo e sim patético. Que se danem as normas escritas da gramática os pontos os parágrafos. Quero só que esta chuva continue a inundar minha sala e continue a molhar as roupas no varal, pois isto a faz existir sem barreiras impostas, ela é simplesmente a chuva que cai, diferentemente de nós, que somos barrados e deixamos de existir. Que se dane minha angústia. Que o vento bata no meu corpo nu e me faça sentir frio, pois ele é vento e eu sou composta por órgãos que trabalham involuntariamente e me fazem sentir e não me deixam deixar de ser. Vejo agora as poças de água em volta de mim, o vento as fazem dançar e o sol matem-se firme e não se ilude. Fica, permanece entre o vento e a chuva, numa harmonia misteriosa, mas que se danem os mistérios, quero mesmo é permanecer aqui fazendo parte deste misterioso momento que só eu estou vivendo porque eu sou a única que existe. Que se danem todos os horários, há pouco os céus se comunicaram e como eu, ele também pode falar. O trovão disse: que se danem os homens, eu quero é trovejar. Eu ouvi, e concluo; que se danem os trovões, eu quero é ouvi-los gritar.
Chuva maravilhosa que existe e nada mais. Sol transfigurado que queima e nada mais. Ventos transparentes que só nos fazem sentir e nada mais. Trovões barulhentos que falam e nada mais. Eu, nada, que nada sou e nada mais!