ESPELHO PARTIDO

Aida e Aída. Diferença de tônica. Aida e Aída, diferença de poucos meses. Aida, aquariana e Aída, sagitariana. Nascidas no mesmo dia, 25, e na mesma cidade do mesmo ano. Coincidências que iam ao ponto de parecerem gêmeas idênticas: o mesmo perfil, o mesmo tipo de olhos, a mesma boca, a mesma altura. Não fosse o detalhe de Aida ser loura e Aída, morena, ninguém as distinguiria. Sósias, não irmãs. A coincidência de terem amigos comuns levou-as a saber uma da outra.Acabaram se conhecendo, num barzinho freqüentado por esses amigos. Ao ato de se verem seguiu-se o sentimento incomum para ambas: a paixão. Desse dia em diante, unha e carne. Deixaram amigos, deixaram família, quase deixaram emprego (Aida era secretária e Aída, caixa de banco). Alugaram um pequeno apartamento no Bixiga para serem felizes para sempre. Chamavam a atenção de olhos masculinos e de outros nem tanto. Companheiras fiéis e constantes, fizeram juntas a faculdade de letras e passaram a lecionar na mesma escola: Aida, português e Aída, inglês. Mudaram-se para um apartamento maior, na Paulista, e lá reinavam numa pequena corte de amigos e admiradores. Perderam o viço os cabelos louros de Aida. Pintalgaram-se de branco os cabelos negros de Aída. Pintaram-nos ambas com a mesma cor, o que lhes acentuou a semelhança física. Até amigos de longa data costumavam confundi-las. Imagens invertidas de espelho. Aos sessenta anos, aposentaram-se. Aos setenta, descobriram-se diabéticas. Aos setenta e cinco, pouco dias antes de completarem as bodas de ouro, o espelho partiu. Diante do caixão de Aida, Aída manteve-se serena: não vestiu luto, não chorou uma só lágrima. Depois, vendeu tudo o que ambas possuíam, até o apartamento. Desapareceu. Alguns disseram que fora para a Europa. Outros, que se mudara para o interior de Minas. Só o que se sabe é que, cinco anos depois, um dos amigos que freqüentava o apartamento da Paulista lembrou-se delas num dia de finados e reuniu um grupo remanescente para levar flores ao túmulo de Aida, no Cemitério da Consolação. Surpresa: ao lado da foto de Aida, com a data de nascimento e morte, a fotografia de Aída, ainda jovem e morena. Abaixo, a inscrição: “a vida deste lado do espelho não vale a pena, meu amor”. Sem qualquer outra informação. Vasculhados os documentos legais, descobriram que ela morrera poucas semanas depois de Aida. No atestado de óbito, a causa da morte estava em branco.