Até que em fim, Amigos
"Até amanhã", a frase marcava o fim de mais um expediente para Geraldo que respondeu com um aceno de cabeça. Olhou, ainda que forçando as pálpebras pesadas pelo sono, e viu Donizete, cliente diário da boate Gatas Selvagens. O cheiro de álcool, misturado com fumaça de cigarros, formava o perfume do ambiente e cada cliente, como Donizete, levava um pouco do odor.
Geraldo conferiu o relógio: "Três e meia". Levantou do banco de madeira e passou as mãos no rosto. Reparou que Donizete parado, tipo que segurando um poste. A cabeça estava baixa. "Ta de porre" pensou rápido. Distraiu-se com um ruído no interior da boate, era Mara se ajeitando para sair, correndo num breve “Boa Noite”. Geraldo respondeu acompanhando num rápido olhar que logo se desviou e deparou, de novo, com Donizete, só que desta vez deitado, de bruços, inerte. “Será que está passando mal?”. Decidiu conferir. Aproximou-se. Chamou: “Hei... Donizete...”. Não houve resposta. A penumbra fez com que Geraldo se aproximasse um pouco mais. Foi aí que reparou o filete de sangue no chão. Rapidamente, tentou desvirar o corpo e deparou com o desespero no olhar do homem. “Socorro” era o que se ouvia na alma. Donizete tentou falar alguma coisa, mas não conseguiu.
Geraldo conhecia Donizete o tempo em que trabalhava como segurança na boate, há cerca de quinze anos. A convivência, quase que todas as noites seguidas de madrugadas, proporcionou um relacionamento, ainda que vago. Sabia, como história comentada por uma das meninas, que no caso de Donizete, militar reformado, era a solidão de um divórcio seguido pelo abandono dos filhos o que fizeram dele mais um cliente no local, que assim como quase todos, buscavam companhia para “enganar” a solidão e álcool para anestesiar a realidade. Com o tempo, o dinheiro foi acabando e a bebida passou a fazer mais efeito. O resultado fez de Donizete “Um chato” como definia Rosane, uma das “borboletas” do show. Em seu particular, Geraldo sabia bem como era a dor de viver o abandono e a solidão de voltar para a casa e não ter ninguém esperando. Agora o que se via era um homem que segurava suas mãos.
“Calma Donizete, vou procurar ajuda” disse, porém sentiu um aperto mais forte como resposta. O olhar de Donizete agora era preocupado. Mais uma tentativa de falar. Não conseguiu. Geraldo tentou soltar as mãos. Donizete segurou com mais firmeza. Neste momento, Geraldo percebeu algo além. Algo que estava ali, além da tristeza e do vazio. Geraldo viu pela primeira vez que ali caído havia semelhante. Donizete sentia medo de ficar sozinho e apertava a mão de Geraldo numa tentativa que significava “Fica comigo”. Geraldo se sentiu liberto do preconceito, dos paradigmas e simplesmente ficou. Lembrou-se que num jardim, há muitos anos, um homem também se sentiu sozinho e pediu que os amigos, àqueles que O acompanharam por três anos: “Fiquem um pouco comigo”. Sentiu as lágrimas brotarem. Lembrou de cada rosto que fazia parte daquele universo de fuga e alívio. Lembrou também, que as meninas falavam de sonhos e projetos e que muitas vezes ouviu clientes falando sobre família.
Olhou mais uma vez para o rosto de Donizete. Sentiu o aperto de suas mãos enfraquecer. Calmamente esperou, até que o último suspiro, seguido do “largar” das mãos, sinalizou como o fim. Ajeitou o corpo. Olhou, só que desta vez não viu o cliente, mas sim o mais novo...Amigo.
Ubirajara Oliveira