Reencontro

Quase tive um treco! E, desta vez, não foi o maldito cheiro de peixes frescos da sessão de congelados do supermercado. Acho que chega a ser irônico: Quando uma mulher corta o cabelo, isso realmente quer dizer; isso eu digo com toda a convicção e posso afirmar com toda veracidade; que uma grande, imensa e incomensurável virada radical acaba de acontecer na vida dela. Porque senão, não cortaria o cabelo, não tão aparentemente assim, de supetão, como se corta as unhas... quando elas, - as mulheres - cortam os cabelos, quer dizer que algo errado aconteceu. Ou algo extraordinário, isto quer dizer, que, logo ocorreu algo fora da rotina da fulana. Uma excentricidade anti-programável, eu diria.

Na outra ponta do corredor, junto à sessão de cosméticos; entre os barbeadores cor-de-rosa para depilação e as tinturas mágicas que prometem deixar seus cabelos iguais aos da Madonna, estava ela. Contudo, fazia tempo que não via aquele rosto. A última vez, fora em um Drive-In, às escondidas. Eu a olhava, pasmem, futucando uma coloração nova no mercado da beleza, cheirando e lendo as instruções de uso... Seus cabelos, porém estavam curtos demais, arrepiadas atrás e com uma espessa franja Channel caídas aos olhos. Será que ela virou lésbica, e é o "homenzinho" da relação? Será quevirou Comunista? Pior. Será que ela está ouvindo NX Zero? Oh, Deus! Isso seria terrível! Todavia, Flávia sempre teve mesmo uma icógnita musical... Afinal, quem em sã consiência, no final da primeira década do século 21, ouve Beto Barbosa? Porém, eu tinha a sensação que era mais que um simples disco de vinil em sua vitrola.

Ela me viu. Eu ja havia visto-a. Ela sorriu. Eu acenei. Flávia vestia uma blusa com a estampa do Luke Skywalker em alto relevo, mini saia drapeada e tênis. Eu poderia até jurar que aquelas meia-calças pretas e transparentes foram compradas em um desses brechós da internet. Tentei fazer cara de surpresa. Ela veio e minha direção, sorrindo:

- Maurício!

-Tá diferente, Flávia...

-Talvez.

-Tá misteriosa...

-Um pouco... e você está bem?

-Depende. - eu disse. Daí ela fez uma careta estranha e respondeu num monossílado interrogativo.

-Hã?

-Depende do ponto de vista que você defende, do que é estar bem.- eu disse.

-Tá. Você está bem?

-Estou, por que não estaria?

-Talvez por defender o ponto de vista errado em estar bem.- disse ela.

-Talvez.- eu disse.

-E você, como veio parar aqui?

-Sei lá, isto é um supermercado... centenas de pessoas passam por aqui todos os dias.

-Oh, claro...

-Eu, por exemplo, cheguei aqui com uma perna direita, depois a esquerda, utilizando sempre coordenadas sucessivas e alternância...

-Muito engraçado.

-E você, fazendo o quê? - perguntei.

-Mudei de curso. Faço fotografia, acabei de voltar de um seminário em Hong Kong... você curte fotografia?- perguntou ela, dando um jeito na franja.

-Acho que a arte fotográfica é muito mais que toda a família com o cachorro num fim de semana e pedir para o tio gordão bater a chapa. Fotografia são nuances, movmento e intuição. Mais que feeling das matizes, saca? Tem que ter uma percepção maior no olhar, nada óbvio. Algo como "pedir para o instante fugaz pra ficar"...

Eu havia dito isto com os braços semi-estendidos para a frente, como um sonâmbulo, e os olhos para o alto, proferindo pausadamente, como um escritor que descobre a metáfora genal: "pedir para o instante fugaz pra ficar". Acho que li essa merda em algum lugar, ou ouvi no rádio... Porém, sei que ela gostou da resposta, porque, abriu logo um sorriso largo e disparou:

-A gente nunca mais se viu...

-Realmente.- eu disse

-Achei que você só me quisesse como parte da sua estatística machista das mulheres comidas...

-Igual as mulheres, tudo são números. Viva a Revolução Feminina! Vocês poderiam até começar pagando o Drive-In...- eu disse.

-Seria arriscado, mas sabe o que é? Tá ficando meio monótono esse lance de arque de diversões para marmanjos. Às vezes tenho a sensação que sou uma espécie de feriado prolongado para os barbudos...

-Ha ha... a coisa mais antiga do mundo é mulher ir atrás de homem e depois dissimular. A fêmea precisa provar que é confiável, não promíscua, senão, nunca será a mãe dos filhos dele. O cara é a fim dela, daí ela finge que não quer...É antropológico! Fazparte do ritual da dança do acasalamento. Etapas do processo...

-Machista...daqui a pouco diz que é o Jece Valadão.- disse ela.

-Depende... o que você achou da última?

-Última?

-Performance. - eu disse

-Homens, homens... Deus!

-Aula de anatomia, vai! - Apontei.

Ela me deu um breve passeio, meio desconfiada.

-É...

-Tipo King Size?-perguntei.

Ela paroupor alguns instantes, piscando os olhos ininterruptamente.

-Você não quer uma epopéia, quer? Você quer uma Bossa Nova? Já sei, Ode ao pinto! Você quer um recital de poesia peniana?

-Uma salva de palmas remedia minha vaidade...- eu disse.

-O que seria dos homens sem suas pieguices?

-Fácil. Seríamos mulheres, que ao final não seria de todo ruim. Teríamos orgasmos múltiplos e mais estimativas de longevidade, o que não seria má ideia, considerando, é claro, os orgasmos múltiplos.

Ela ficou a balançar a cabeça em negativa. Depois, rindo, sacolejou o corpo inteiro dando gargalhadas: "você"... Meu celular então começou a tocar, e fiz ainda um gesto com a mão espalmada enquanto via Flávia tirar algo da bolsa. Enquanto discutia com meu sócio, ela pegou minha mão esquerda no ar, inseriu um bilhete nela e beijou minha boca, num encosto rápido, sem molhar direito os lábios. Meu rosto, torto como pêndulo, prensada contra o ombro, viu ela seguir em frente sem olhar para trás.

Nunca mais a vi, visto que ao desligar o telefone, passei o número para o celular e joguei o bilhete no lixo, já em cima do conteiner. Qual fora o acaso, ser roubado ao sair daquele supermercado.

Lucas Feat
Enviado por Lucas Feat em 18/05/2009
Reeditado em 18/05/2009
Código do texto: T1601059
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