Natal de 1810

Vou contar-lhe o que houve em dezembro de 1810, mas com a condição de não revelar a ninguém esse meu segredo. Tenho por ti imensa fidelidade e jamais lhe faria mal. Mas, você sabe como é a vida e a carne é fraca. E como já estou no fim da vida e não há mais nada o que fazer para mudar o acontecido resolvi esclarecer os fatos.

Era Natal e eu estava sozinho em minha casa quando você apareceu me chamando. Fingi que não ouvia o caro amigo, mas diante de tão grande insistência abri a porta.

- Boa Noite, Senhor Alexandre Herculano.

- Boa Noite, Senhor Teodoro Sampaio. O que faz aqui por essas bandas e a essa hora?

- Eu, minha esposa e meus filhos queríamos que passasse a ceia conosco. Vai ser de grande importância a sua presença.

Confesso que relutei muito, porque já pressentia que algo iria acontecer. Temia o pior e por isso estava trancafiado dentro da minha humilde casinha. Mas você insistia que eu fosse, que acabei aceitando o difícil convite.

Daquela noite em diante não tive mais sossego. Dia a pós dia me culpava pelo acontecido. Tinha pesadelos horríveis, mas confesso que a experiência foi boa demais.

Estava um frio daqueles de congelar até o nariz e eu pobre e solteiro não tinha ninguém a me esquentar naquelas noites frias. Via sua família linda e unida e tinha uma invejinha danada, pois como eu sendo um homem tão bonito e culto não havia encontrado ninguém para casar. É claro, que todos sabiam que eu não tinha onde cair morto, a não ser o chão. Nem sequer um bom dote eu tinha para arrumar uma bela dama. Foi aí que tive uma idéia.

Já que era Natal e não fui eu que me convidei e sim você que me convidou para ceiar em sua casa, porque não aproveitar a oportunidade que a vida estava me oferecendo. Eu sempre fui muito rápido de raciocínio e na minha modesta vida de homem culto aprendi a me virar. Não sou gatuno, mas sou esperto. Lembro-me perfeitamente quando me perguntou se não pensava em me casar.

- Sim, Senhor Herculano. Um dia encontrarei a minha metade. Estou à procura, mas as moças de hoje só querem saber de bons dotes e ainda por cima sou um simples intelectual.

Intelectual era o nome dado a quem não fazia nada, mas eu defendia a minha posição na sociedade, afinal intelectual era alguém muito culto. Ah! E isso eu era mesmo. Passava os meus dias ganhando o meu contando histórias e inventando outras. Tinha o respeito das donzelas e das senhoras importantes da sociedade paulistana. Era conhecido como o jovem Zé da Intelectualidade. Adorava esse título. Era nobre e combinava comigo. Não havia um homem sequer com a minha estirpe e por onde eu passava causava inveja. Já tive aos meus pés grandes senhoritas, condessas, princesas, rainhas e até as serviçais. Eu sabia como conduzir uma dama e nunca as deixava na mão. Precisando era só me chamar, que eu as atendia prontamente. Era um tipo de conselheiro sentimental, se é que naquela época existia isso. O que interessava mesmo era o meu apreço pelas jovens senhoras e senhoritas daquela época, aos quais à menor carência afetiva me chamavam.

- É nobre Herculano, tanta coisa aconteceu naquele Natal de 1810.

Passamos horas conversando e você na sua chata insistência para que eu casasse. Já havia me apresentado tantas senhoritas e ainda me ofereceu o dote que precisava para casar com a senhorita Anastácia, filha do Conde de Louveira. É claro que não aceitei e imediatamente arrumei uma desculpa para tal. O que você não percebia é que eu não estava à fim de me enrolar com ninguém, principalmente com a filha de Conde. O que eu gostava mesmo era da minha vida de espertalhão, vivendo às margens de uma sociedade corrompida e que tinha por bem ajuntar escravos. Pobre sociedade hipócrita!

Naquele dia eu jurava que o senhor não mais me importunaria com essa história de casamento. Como sempre, enganei-me de novo, pois o senhor queria-me amarrar a alguma dessas nobres senhoritas. O que o nobre senhor não sabia, que o pior estava por vir. Justamente na Noite de Natal. Eu avisei que não queria ir, portanto não venha me culpar pelo ocorrido, pois a insistência foi sua.

A noite estava linda apesar do imenso frio que fazia. Podíamos ouvir as risadas dos vizinhos reunidos em volta de suas mesas, esperando a chegada de mais um dia. Todos felizes com suas mesas fartas e suas escravas descalças servindo as bebidas prediletas. Era assim quer viviam os nobres aristocratas daquela época. Eu fingia uma alegria que não tinha e o desprazer de estar ali, conseguia não deixá-lo perceber. Não iria estragar aquela noite tão promissora!

A sua bondade me irritava e a sua esquisitice também. Pensava como um homem da sua categoria podia ser tão imbecil assim? Nem parecia dono de fazendas. Isso te digo, porque nunca fui amigo de pessoas bobas. E você era muito mais que isso, era um completo imbecil. Educado, certinho, honesto e o pior era a favor da abolição. Da abolição! Por isso estava daquele jeito. Na noite de Natal, sozinho com sua família, enquanto os outros serviam-se das escravas. Pobre, Herculano!

Quando dei por mim, passara-se 70 anos e eu aqui nesse leito, inválido e doente, esperando a morte chegar, ainda não havia confessado o meu segredo.

- Fala, Senhor Teodoro. Estou esperando a sua confissão. Não tenho tanto tempo assim também. A velhice enfim chegou e trouxe consigo o cansaço. Mal posso andar e a minha voz, como percebe está baixa e os meus passos lentos.

Naquele momento senti meu pobre corpo estremecer e compreendi que havia chegada a hora dos acertos de conta. Acertos esses, que o meu amigo senhor Teodoro nem imaginava que eu os guardara até a hora da minha morte.

- Amigo Herculano. Você lembra do Natal de 1810? Quando me chamou para ceiar com vocês?

Nesse instante meu amigo senhor Herculano arregalou os velhos olhos cansados e balançou a cabeça afirmando que sim. Percebi que seu olhar estava diferente e que as lágrimas escorriam-lhe dos olhos. Vi que engoliu seco e num último suspiro caiu ali, diante de mim, sem ao menos dar-me a chance de contar o meu segredo. Não acreditava no que estava acontecendo e num gesto espontâneo, debrucei-me sobre ele e pedi perdão. Sei que ele não ouvia mais, já havia partido, espero, para melhor. Diante daquele corpo, chorei as minhas mágoas, gritei, uivei como um lobo feroz e as minhas últimas palavras foram: Adeus, amigo meu. Perdoa-me pelo que te fiz.

Hoje estou aqui, continuo nas últimas, mas ainda não chegou a minha hora. Desde aquele último adeus, passaram-se dois anos. E eu não confessei meu pecado porque Deus assim o quis. Então, se não contei ao meu fúnebre amigo é claro que não confessarei a ninguém e muito menos a você.

Se Deus não permitiu que eu falasse, vou-me dessa um dia, levando comigo o meu maior segredo. Como eu sempre digo: A vida é assim mesmo e a carne continua fraca.

A vida é uma caixinha de surpresa
Enviado por A vida é uma caixinha de surpresa em 17/05/2009
Reeditado em 17/05/2009
Código do texto: T1599552