A ENCHENTE DO PARANHANA EM 1982
Em 1982, quando eu tinha dezesseis anos, vivi uma experiência inesquecível envolvendo muitas águas. Morávamos em uma casa antiga de colonos alemães num descampado colonial pouco habitado, há uns cento e cinqüenta ou duzentos metros de uma das margens do rio Paranhana, na localidade de Kelermann, no município de Taquara, há dez quilômetros do centro de Igrejinha. Certo dia, após uma temporada de muita chuva (chovera o mês inteiro), ao levantarmos pela manhã, vimos que a água subira e estava há uns vinte metros da porta de nossa cozinha. Todavia, não nos preocupamos, tendo em vista a improbabilidade histórica de a água chegar à porta. Entretanto, pouco depois do almoço ela já dava sinais de que entraria mesmo na cozinha, pelo que eu e meu padrasto corremos através do antigo salão de bailes até à frente da grande casa a fim de estudarmos um meio para sairmos para algum lugar mais alto. Constatamos, porém, que uma forte correnteza já cruzava a estrada vicinal do lugarejo em sentido diagonal a frente da casa, sendo que a água já circundara a construção. Vendo-nos impedidos de sair com duas mulheres, minha mãe e a vizinha, as três filhas adolescentes do meu padrasto, meu irmão de quatro anos e a filha de colo da vizinha, articulamos um plano para buscar socorro. Meu padrasto tomou uma grosa mangueira que fizemos de corda e, amarrado a ela pela cintura, fui entrando na correnteza conforme ele a soltava desde a grande porta do salão. Fui vencendo o poder da corrente até alcançar o outro lado da estrada, onde me agarrei na cerca de arame farpado e senti a força da água agitada pondo-me quase sem controle, pois me impulsionava com violência sobre a cerca que eu evitava segurando forte nos fios de arame.
O instante era crucial. Qualquer vacilo e perderia completamente o domínio. Se soltasse a corda improvisada não conseguiria sustentar-me somente com os braços nos arames. O peso da correnteza era demais. Dando as costas para a água, a pressão era maior, quase me fazendo encostar o peito nas farpas. Por isto procurei conduzir-me de perfil para a correnteza ao longo da cerca. Dessa forma, porém, perdia a sustentação do braço esquerdo, tendo que sustentar-me quase que unicamente com o direito.
Do centro da correnteza até à margem foram uns trinta metros lutando com braços e pernas para não se pressionado contra a cerca. Os pés quase eram arrastados pela força da água. Sentia a terra ser tirada de baixo eles. Dessa forma, porém, resisti e, junto à cerca, tendo, por vezes, as mãos feridas por alguma farpa, cheguei ao outro lado a salvo, podendo dali avançar a seco por um mato até a rodovia, onde pedi socorro.
Quinze ou vinte minutos depois, quando retornei com um caminhão com bombeiros treinados e uma moto-niveladora (patrola), vimos estupefatos a força da água começar a arrastar a máquina de ferro. Minutos antes, os homens tinham passado por grande sufoco resgatando um salva-vidas que se lançara amarrado correnteza acima com o intuito de nadar até o outro lado. A força da água não lhe permitiu avançar mais do que um ou dois metros, levando-o de encontro aos arames da cerca, de onde foi regatado com muitos arranhões e escoriações, após ter sido revolvido nas farpas como se fosse um novelo de lã nas patas de um gato.
Após descartar-se a máquina pesada para a travessia, conseguiram um pequeno barco a motor. Enquanto aguardava-mos a chegada do barco, no lado oposto da correnteza os ilhados já subiam por uma tábua improvisada por meu padrasto desde o assoalho do salão até um plátano gigantesco que havia na frente da casa. No mesmo instante víamos no campo ao lado da propriedade, por onde passava a correnteza, três grandes bois zebus em pé, abraçados aos troncos de três plátanos para não serem levados. Pouco depois, porém, eles foram vencidos e jogados pelo ímpeto das águas contra a cerca do outro lado da rua, embrenhando-se como se fossem bolas de tênis nos arames farpados por onde eu me guiara meia hora antes, rompendo-a e sendo empurrados com ela até reterem-se nos “amaricás” cinquenta metros dali, onde morreram asfixiados.
Não demorou muito para a chegada do barco, o qual logo se viu que tinha o motor fraco, quando seus dois tripulantes tentavam dar novamente a partida no motor que tinha morrido cinquenta metros correnteza acima. Após um breve sufoco, porém, seguiram a jornada até o outro lado, de onde resgataram os flagelados aos poucos, usando outro caminho para evitar a correnteza.
Naquele dia conheci o que é a força das águas agitadas nos levando para onde não queremos ir.
Wilson do Amaral