MARIA MARGARIDA
Nós éramos cinco amigos. Eu, Chute, Caduco, Zuza e Cabrito. Morávamos na mesma praça e compartilhávamos de tudo. Ela morava na rua paralela. Da minha casa eu via a janela do seu quarto, o que me facilitava avisar aos outros quando ela estava trocando de roupa. Era morena escura, lábios proeminentes, pintados de vermelho, cabelos excessivamente curtos, rosto oval, mais achatado nos lados, nádegas carnudas, exageradas. Um rosto já marcado por rugas. Usava um vestido estampado, colado no corpo, sandálias baixas e brincos grandes, desproporcionais, em forma de margarida.
Saía de casa sempre no mesmo horário, de cabeça baixa, andando igual a uma gansa. Ao cruzar a praça, olhava discretamente para as nossas casas para certificar-se de que estava sendo vista. Descia a rua e desaparecia no beco escuro. Saíamos correndo, escondido dos pais. E cada um ia avisando o outro. Ao chegarmos no beco, ela já estava nos esperando. Era a maior farra. O melhor da festa ia começar. Então gritávamos em coro:
- Maria Margari dá dá dá! Margari dá dá! Margari dá dá!
Depois dos nossos gritos, acontecia o previsto. Ela enlouquecia. Corria desajeitada - um animal tentando capturar a presa - pegava o que visse pela frente e jogava em nós: pedras, pedaços de pau, tijolo, tudo. A gente delirava, correndo e gritando. Ela atrás. Era cada um por si. Cada qual pro seu lado. Ela ficava atarantada, querendo pegar qualquer um de nós. Quando se cansava de correr, sentava no meio-fio chorando, gritando palavrões horrorosos, esmurrando as próprias pernas e sapateando, enquanto ríamos até cansar.
Mas como tudo que é bom dura pouco, como diz ditado, contaram para os nossos pais. Levei uma surra.
- Isto é pra você aprender a não mexer com os outros. – gritava minha mãe, enquanto o chicote comia solto na minha bunda e nos meus cambitos.
Os outros meninos também apanharam. Assim, combinamos não atazanar mais a vida da coitada.
No dia seguinte, fomos para a praça e ficamos brincando de sei-lá-o-quê! No mesmo horário, à noitinha, Maria Margarida passou. Mesmo vestido, os brincos grandes, o batom... e desceu para o beco. Ninguém foi atrás. E o medo de apanhar dos pais novamente? Meia hora depois, ela voltou. Passou bem pertinho de nós. Passou uma vez. Foi até o final da rua. Ninguém disse nada. Voltou, tornou a passar. Sentimos que ela estava diferente. Parecia decepcionada. Permanecemos calados, prendendo o riso. Quando a vimos voltar pela quarta vez, chegar bem perto da gente, mudamos de idéia e decidimos gritar o apelido, mas inesperadamente ela parou e nos olhou muito séria. Os brincos pareciam dois pires colados nas orelhas. Percebemos a decepção estampada na sua voz quando disse:
- Uai, ocês num vai mexê cum eu hoje não?
Caímos na risada. E em meio a folia, um de nós sugeriu:
- Desce...
Maria Margarida saiu de cabeça baixa, naquele seu caminhar de gansa, e desapareceu na escuridão do beco.
Naquele momento descobrimos que a brincadeira adquiria um novo sabor. Além de fugir das pedradas de Maria Margarida, teríamos que fugir também da surra dos pais. Mas a vida é cheia de surpresa. No dia seguinte, o nosso “brinquedinho” sumiu. Ficamos intrigados. E eu muito mais quando mamãe contou:
-Das Dores adoeceu. Foi internada às pressas! Vamos visitá-la!
-Quem é Das Dores, mamãe?
- Aquela que a molecada ficava no beco mexendo com ela. Você está incluído na molecada. Esqueceu da surra?
- Não vou!
Eu nem me lembrava que ela se chamava Maria das Dores. E nem queria ir. Tinha medo de hospital. Meu pai me obrigou. Não gostava que mamãe andasse sozinha.
Entramos no quarto. Mamãe, por alguma razão, saiu falando baixinho com a enfermeira. Ficamos os dois sozinhos. Então ela apontou a beirada da cama, me convidando pra sentar. Receoso, obedeci. Ela me olhou longamente nos olhos. E naquele momento senti que desejava ouvir a minha voz. Então sussurrei:
- Maria Margari dá dá!!! Margari dá dá...
Ela levantou o prato que ainda tomava sopa e com a debilitada força que lhe restava, acertou em cheio a minha cabeça. Gritei mais de susto que de dor. O prato estraçalhou no chão. No mesmo instante, percebi que o seu corpo se tornava rígido. Essa foi a última coisa que Maria Margarida fez na vida.